|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Como se fosse jornalismo
HÉLIO SCHWARTSMAN
FIQUEI assustado com o ""SBT Repórter". A
coisa é totalmente falsa. O que estão exibindo
são programas obviamente americanos, mas
que talvez tentem passar por brasileiros.
Calma, eu explico. O que vai ao ar é, sem sombra de dúvida, importado. É uma espécie de ""Fantástico" piorado
produzido pelas grandes redes dos EUA. O SBT comprou, mas lhe dá um toque brasileiro. É aqui que começam os problemas.
A narração em ""off" é feita pelo jornalista Hermano
Henning, o mesmo que apresenta o ""Jornal do SBT". Os diálogos, reencenados
ou em filmagem direta, são dublados,
mas numa daquelas dublagens de piada,
em que a dessincronização é perfeita. Para piorar, os nomes dos personagens envolvidos são ""traduzidos" para o português: Maria, Roberto, Pedro...
O ""SBT Repórter" deliberadamente
deixa de mencionar onde ocorreram os
fatos em questão. Quem procurar com
atenção e tiver sorte, poderá encontrar
indícios, como um NC (North Carolina)
na placa do carro. Pior ainda, Hermano
Henning se refere várias vezes à câmara
da rede dos EUA que fez o programa como ""nossa equipe de reportagem".
Apesar desses truques (até meio infantis), seria um pouco exagerado afirmar
que o programa tem como objetivo ludibriar o telespectador. Como já disse, a
dublagem é grosseira. A paisagem é tipicamente norte-americana, e sempre aparecem textos, de
placas, cartazes ou telas de computador, em inglês. Se a
idéia é enganar o público, é preciso considerá-lo especialmente tolo, mais do que seria lícito supor.
É claro que, a essa altura, ""SBT Repórter" já não pode
pretender fazer jornalismo. É aqui que o programa começa a me interessar. O texto editado falha na missão mais
básica de qualquer peça jornalística, que é informar o
quê, quem, quando, como, onde e por quê.
Na estrutura de ""tradução" escolhida pelo SBT, pelo
menos o quem, o onde e o porquê ficam irremediavelmente comprometidos. É difícil entender como Hermano Henning esteja se prestando a esse papel. Mas esse é
um problema dele. O meu é explorar um pouco melhor a
sutil dialética do ""SBT Repórter", em que as coisas são o
que são, mas sem sê-lo exatamente.
Abandonemos por alguns instantes o mundinho imanente do jornalismo e procuremos olhar para a transcendência. O ""SBT Repórter" nos oferece uma dupla oportunidade. Podemos assisti-lo como céticos, ""como se" desconfiássemos (e com razão) de tudo o que o Hermano
Henning nos conta. Mas também podemos vê-lo ""como
se" os fatos apresentados não dependessem mesmo de
circunstâncias como tempo, lugar etc. O que me interessa
aqui é a expressão ""como se". Nós podemos agir "como
se". Na verdade, a crer na filosofia do pensador alemão
Hans Vaihinger (1852-1933), não fazemos outra coisa que
não agir ""como se".
Vaihinger é um daqueles filósofos completamente esquecidos, mas nem por isso menos importantes. Sua obra
menos desconhecida é ""A Filosofia do Como Se" (""Die
Philosophie des Als Ob"), mas seu trabalho como comentador de Kant também é relevante. Ele
é fundador da revista ""Kant Studien",
bem como da Sociedade Kant.
Como não poderia deixar de ser, a filosofia do ""como se" surge de um ""topos" kantiano. Não podemos conhecer as coisas em si, o mundo como ele
é de verdade. Estamos condenados a
conhecer apenas fenômenos, ou seja,
temos de nos contentar com o que
surge da interação entre sujeito e objeto, em que há muito mais de nós mesmos como sujeitos do que das coisas
como elas de fato são.
O mundo é um labirinto de contradições, e o fim da filosofia é, para Vaihinger, encontrar significados para
tornar a vida vivível. O ""como se" nada mais é do que uma ficção com valor
pragmático. Podemos e devemos, se
desejarmos permanecer vivos, agir
""como se" houvesse um mundo material exterior que opera independentemente de nós. Quando damos de cara com um leão na floresta, devemos fugir
em vez de especular sobre as condições de existência de
um leão ou sobre sua ""leonidade".
O ""como se" é um princípio heurístico que não só nos
ajuda a fazer ciência como nos permite sobreviver. Na vida, devemos agir ""como se" o mundo exterior existisse
independentemente do sujeito. Em sociedade, devemos
agir ""como se" existisse certeza moral. Na ciência, devemos agir ""como se" existisse o elétron, mesmo se soubermos que ele não passa de uma construção teórica.
Estamos constantemente agindo ""como se". As ficções,
mais do que úteis, são necessárias à vida.
O ""SBT Repórter", se se chamasse ""SBT Filósofo", talvez cumprisse sua missão no mundo do ""como se". Dado
que o nome é ""SBT Repórter", não cumpre. No mundo
do ""como se" devemos agir "como se" o jornalismo procurasse sempre se aproximar o máximo possível daquela
ficção normalmente chamada de ""verdade". Quando o
que se proclama jornalismo recusa o próprio ""como se"
do jornalismo, o mundo se torna, irremediavelmente, um
labirinto de contradições.
Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: O sol se despede de Touro Próximo Texto: Filmes e TV paga Índice
|