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CRÍTICA
As bodas de prata do mingau kitsch da Globo
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
É mais fácil experimentar do que explicar o
mal-estar que provoca o
"Fantástico", há 25
anos no ar, completados
mês passado. Há decerto
ingredientes de sobra
que dão a esse mingau de
variedades um sabor um
tanto intragável.
A receita foi sempre
quase a mesma ao longo
do tempo. Muito pouca
coisa mudou desde que
Boni inventou o formato
da revista de entretenimento dominical que deveria ser popular o bastante para roubar a audiência de Flávio Cavalcanti -um dos áulicos
da ditadura, então astro
da Tupi- e "moderna"
o bastante para distrair
uma classe média que vivia a euforia do milagre
consumindo carros e eletrodomésticos.
O "Fantástico" surgiu, pois, como o "show
da vida", um programa
de variedades de extração
nitidamente americana,
capaz de envolver cada
fato banal ou aspecto
prosaico da vida numa
nuvem de brilho, de excepcionalidade, de glamour cinematográfico.
O programa é kitsch
não apenas porque nele
cabe de tudo (e um dos
sintomas do kitsch é o
atravancamento, a disposição excessiva de coisas disparatadas num
mesmo espaço), mas
também porque essa variedade de assuntos veio
desde o início embalada
por uma estética futurista-sentimental de segunda mão, filtrada pelo
mercado, como se anunciasse desde sempre
aquilo em que que iríamos -o Brasil- nos
transformar no futuro.
Há inclusive quem veja
na música de abertura,
cuja letra é de Boni, o
próprio, uma espetacularização hiperbólica da vida que exala um certo
odor fascistóide.
Isso até faz sentido
quando se pensa naquela
voz metálica cantando:
"olhe bem, preste atenção, nada na mão, nessa
também, nós temos mágicas para fazer" etc. etc.
etc. até o final "da idade
da pedra ao homem de
plástico, é fantástico!").
Não é preciso, de qualquer forma, ir tão longe.
O que incomoda no
"Fantástico" talvez seja
o fato de que ele tenha
cumprido seu destino
histórico, ou, em outros
termos, o fato de ele tenha se transformado naquilo que ele sempre foi.
Explico. Disse no início
que o formato do programa se manteve quase
sempre em estado mineral, inalterado.
Havia, no entanto, nos
primeiros anos do programa, também por obra
de Boni, alguma veleidade civilizatória, como se
o programa, ao mesmo
tempo em que dava à
classe média o mingau
que ela pedia, também
apostasse que ela poderia
se transformar em algo
diferente, ou melhor, ou
mais civilizado do que
era e veio a ser.
Se por um lado o "Fantástico" varria os horrores do país da ditadura
para baixo do tapete e
nos apresentava uma colagem amena e colorida
do Brasil, por outro havia
alguns quadros (de teatro
e poesia, por exemplo)
que não se encaixavam
na boçalidade predominante do show da vida.
Alguém poderá dizer
que Dina Sfat declamando Shakespeare naquele
contexto já era algo muitíssimo kitsch, que atendia aos anseios de uma
classe média que, embora botocuda, gostava de
ser tratada de vez em
quando como parte do
mundo civilizado.
Esse tipo de quadro, no
entanto, ficou obsoleto,
pesado demais, não resistiu à massificação e aos
padrões de entretenimento que vingaram no
país. Basta pensar, por
exemplo, num quadro
recente do tipo "A Vida
como Ela É", um Nélson
Rodrigues plastificado
em película de cinema
para que a classe média
pudesse ver sacanagem
com o álibi de que estava
consumindo arte. A estética publicitária envolvendo as cenas de sexo
funcionava como uma
espécie de anteparo moral que tornava aquilo
palatável para a família.
De uns tempos para cá,
o "Fantástico" passou
por uma reforma cosmética, ficou mais arejado,
moderninho, jornalístico, interativo. Mudou de
casca, como quem nos
dissesse que o futuro já
chegou. Glória Maria (a
que se relaciona com os
espectadores como uma
professora de pré-primário lida com seus pimpolhos), Zeca Camargo e
Pedro Bial, íntimos do
espectador, dão o verniz
descolado, up to date e
politicamente correto a
um programa que é, como sempre foi, cafona,
careta e conservador.
O programa dedicado a
toda a família é uma espécie de ficção que se
realizou. Basta olhar um
pouco para o que é hoje a
cultura brasileira para
constatar a que se reduziram nossos ideais de civilização e de modernidade. Nossos horizontes foram reduzidos ao tamanho do "Fantástico".
E-mail: fbsi@uol.com.br
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