São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

As bodas de prata do mingau kitsch da Globo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

É mais fácil experimentar do que explicar o mal-estar que provoca o "Fantástico", há 25 anos no ar, completados mês passado. Há decerto ingredientes de sobra que dão a esse mingau de variedades um sabor um tanto intragável.
A receita foi sempre quase a mesma ao longo do tempo. Muito pouca coisa mudou desde que Boni inventou o formato da revista de entretenimento dominical que deveria ser popular o bastante para roubar a audiência de Flávio Cavalcanti -um dos áulicos da ditadura, então astro da Tupi- e "moderna" o bastante para distrair uma classe média que vivia a euforia do milagre consumindo carros e eletrodomésticos.
O "Fantástico" surgiu, pois, como o "show da vida", um programa de variedades de extração nitidamente americana, capaz de envolver cada fato banal ou aspecto prosaico da vida numa nuvem de brilho, de excepcionalidade, de glamour cinematográfico.
O programa é kitsch não apenas porque nele cabe de tudo (e um dos sintomas do kitsch é o atravancamento, a disposição excessiva de coisas disparatadas num mesmo espaço), mas também porque essa variedade de assuntos veio desde o início embalada por uma estética futurista-sentimental de segunda mão, filtrada pelo mercado, como se anunciasse desde sempre aquilo em que que iríamos -o Brasil- nos transformar no futuro.
Há inclusive quem veja na música de abertura, cuja letra é de Boni, o próprio, uma espetacularização hiperbólica da vida que exala um certo odor fascistóide.
Isso até faz sentido quando se pensa naquela voz metálica cantando: "olhe bem, preste atenção, nada na mão, nessa também, nós temos mágicas para fazer" etc. etc. etc. até o final "da idade da pedra ao homem de plástico, é fantástico!"). Não é preciso, de qualquer forma, ir tão longe.
O que incomoda no "Fantástico" talvez seja o fato de que ele tenha cumprido seu destino histórico, ou, em outros termos, o fato de ele tenha se transformado naquilo que ele sempre foi. Explico. Disse no início que o formato do programa se manteve quase sempre em estado mineral, inalterado.
Havia, no entanto, nos primeiros anos do programa, também por obra de Boni, alguma veleidade civilizatória, como se o programa, ao mesmo tempo em que dava à classe média o mingau que ela pedia, também apostasse que ela poderia se transformar em algo diferente, ou melhor, ou mais civilizado do que era e veio a ser.
Se por um lado o "Fantástico" varria os horrores do país da ditadura para baixo do tapete e nos apresentava uma colagem amena e colorida do Brasil, por outro havia alguns quadros (de teatro e poesia, por exemplo) que não se encaixavam na boçalidade predominante do show da vida.
Alguém poderá dizer que Dina Sfat declamando Shakespeare naquele contexto já era algo muitíssimo kitsch, que atendia aos anseios de uma classe média que, embora botocuda, gostava de ser tratada de vez em quando como parte do mundo civilizado.
Esse tipo de quadro, no entanto, ficou obsoleto, pesado demais, não resistiu à massificação e aos padrões de entretenimento que vingaram no país. Basta pensar, por exemplo, num quadro recente do tipo "A Vida como Ela É", um Nélson Rodrigues plastificado em película de cinema para que a classe média pudesse ver sacanagem com o álibi de que estava consumindo arte. A estética publicitária envolvendo as cenas de sexo funcionava como uma espécie de anteparo moral que tornava aquilo palatável para a família.
De uns tempos para cá, o "Fantástico" passou por uma reforma cosmética, ficou mais arejado, moderninho, jornalístico, interativo. Mudou de casca, como quem nos dissesse que o futuro já chegou. Glória Maria (a que se relaciona com os espectadores como uma professora de pré-primário lida com seus pimpolhos), Zeca Camargo e Pedro Bial, íntimos do espectador, dão o verniz descolado, up to date e politicamente correto a um programa que é, como sempre foi, cafona, careta e conservador.
O programa dedicado a toda a família é uma espécie de ficção que se realizou. Basta olhar um pouco para o que é hoje a cultura brasileira para constatar a que se reduziram nossos ideais de civilização e de modernidade. Nossos horizontes foram reduzidos ao tamanho do "Fantástico".

E-mail: fbsi@uol.com.br



Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.