São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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CRÍTICA

A duas cidades da desigualdade

EUGÊNIO BUCCI

PARA SANTO Agostinho, a cidade de Deus abrigaria os que, de tanto amar o Criador, teriam se esquecido de si mesmos. Quanto à cidade dos homens, esta seria diferente, um lugar habitado pelos que, de tanto pensar em si, já não mais se lembrariam de Deus. Acontece que santo Agostinho está morto. Há 16 séculos. Hoje, pouca gente se lembra dele, de Deus ou mesmo dos homens. Só se pensa em diversão e consumo. Hoje, "Cidade de Deus" não é mais que um longa-metragem que faz sucesso nos cinemas e "Cidade dos Homens" é uma microssérie da Rede Globo. É verdade que essas duas novíssimas cidades trouxeram para o público algo mais que divertimento. Trouxeram uma esperança cívica de que o entretenimento possa retratar os párias sociais e, assim, possa contribuir para a superação das desigualdades.
De minha parte, creio que a esperança se justifica quanto ao filme. É uma esperança vã, contudo, quando se trata da TV. Basta ver que a força do filme é claramente superior à da microssérie. Não que as obras sejam desniveladas. Elas se equivalem. O problema é que cinema e TV também são cidades diferentes. O cinema ainda oferece condições de fruição que preservam a individualidade da obra -sobretudo das obras de arte, como é o caso de "Cidade de Deus", um filme magnífico. A segunda, a TV, dissolve qualquer individualidade que uma obra possa almejar. A TV que temos no Brasil, comercial e apelativa, mistura tudo numa geléia geral indiferenciada: os personagens da ficção se afogam sob as ondas dos anúncios publicitários, que se infiltram pelas paredes porosas dos estúdios dos noticiários. Candidatos à Presidência da República, animadores de auditório, âncoras de telejornais, moças das cervejas, novelas, minisséries, microsséries, todos são promotores do passatempo, da excitação e do choque da platéia de olhar pálido. No cinema, um filme consegue afirmar sua leitura do mundo com alguma autonomia. A TV já é uma leitura do mundo em si mesma.
Desde o primeiro capítulo, "Cidade dos Homens" foi deglutida por essa natureza devoradora da TV. Embora tenha representado uma renovação notável do que se via na Globo, ocupando a tela com personagens que nunca estiveram ali, com uma história de favelados "reais", interpretada por meninos "reais", sobre temas "reais", com um modo de narrar surpreendente e perturbador, "Cidade dos Homens" foi caprichosamente deglutida. Na TV brasileira, o altar nacional do consumo e da pacificação social, toda renovação puramente estética resulta estéril.
A TV brasileira não é apenas avessa à desigualdade. Ela é, mais que tudo, um produto da desigualdade. Concorre para perpetuar a desigualdade. Ela só é ultramoderna porque o Brasil precisava de um imaginário ultramoderno para unificar, no plano das representações, seus filhos separados por abismos materiais intransponíveis. Só é ultramoderna porque o Brasil é ultradesigual. Nela, os párias só têm lugar para aumentar a eficácia do discurso que neutraliza uma percepção mais radical da desigualdade. Ao retratar o excluído, como o favelado, ela não supera as causas da exclusão, mas apenas inclui o excluído no mundo do divertimento. Não no mundo da cidadania. O favelado vira astro, e só. Por sentimento de culpa ou por sadismo, tanto faz, a massa goza com o favelado tornado astro. E se deixa pacificar. O favelado superstar é um fator de lucro. E de pacificação.
Do ponto de vista da Globo, "Cidade dos Homens" é um acerto comercial, sem dúvida. É um tempero, uma pimentinha nova para maquiar o cardápio envelhecido. Do ponto de vista dos autores da microssérie, das causas estéticas e políticas que eles porventura representem, a exibição de "Cidade dos Homens" na tela da Globo é apenas uma derrota.


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