São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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CRÍTICA

Socorrismo e espetáculo

TEIXEIRA COELHO

A REDE Globo ganhou recentemente um prêmio internacional de televisão. A relação com a comunidade foi um dos aspectos destacados. A própria emissora, reportando o prêmio, apontava os casos de sua vertente comunitária: o tema das crianças desaparecidas, numa novela; doença transmissível, em outra; a homossexualidade numa terceira. A mesma emissora tem outro programa "comunitário", "Desafio", apresentado em seus noticiários e que põe em competição duas cidades para ver, por exemplo, qual limpa mais depressa uma praça pública. Enquanto isso, num canal religioso, uma telespectadora fala, sofrida, do vazio que sente na vida e da dificuldade de enfrentar a rotina diária. Não recebe resposta. O apresentador-pregador está ali para mostrar que é procurado, não para dar respostas. E domingo passado, a mais prestigiosa rua comercial dos Jardins, em São Paulo, é em parte fechada ao trânsito para que a mesma emissora vencedora do prêmio grave cenas de uma nova série. No fim de tarde, o ambiente é de cidade civilizada. Quatro situações distintas: novela com "tema social"; notícia de limpeza pública transformada em competição ou vice-versa; confessionário existencial; desfrute temporário do espaço público. Situações distintas pela natureza (umas são de representação, como na novela e na competição; outra é de presentação efetiva, na rua) e no tom do contato (na novela, o clima é "sério"; na competição de limpeza, o repórter parece narrar jogo de futebol, aos berros; no "confessionário", impera uma angústia que a pobreza intelectual do "programa" não oculta; na rua, a experiência de socialidade é quase zen). E da maioria dessas ações se pode dizer que são intencionais e buscam efeitos determinados -entre eles, a autopromoção- enquanto a última, o domingo na rua, gera um cenário não planejado mas provocado pela televisão: se um circo quisesse cancelar temporariamente a realidade das ruas para fazer seu espetáculo, talvez não o conseguisse. O direito da televisão, este, parece natural... Digo isto não como crítica mas como constatação de uma sensibilidade cultural atual. Todas elas, no entanto, têm o mesmo epicentro: a TV. E todas caracterizam o que poderia ser identificado como ação sociocultural se por vezes não passasse de mero socorrismo e, em outras ocasiões, de puro espetáculo. É possível discutir a sinceridade dos motivos por trás disso. Há uma tendência, armada sobre hábitos de pensar endurecidos, para considerar que o interesse pelos assuntos comunitários por parte das grandes empresas é, antes, a busca por limpar ou dourar o próprio nome. Isso não impede que agências de publicidade abram departamentos de relação com a comunidade para orientar os clientes que ainda não despertaram para esse segmento de sua inserção social. E mesmo instituições que atuam apenas nesse terreno, como universidades e museus, vêem-se obrigadas a dedicar parte de sua atenção a uma atuação comunitária ainda mais "social": oferecer arte e cultura parece não bastar. Tudo isso pode ser visto como considerável mudança no comportamento geral (dos mais poderosos atores econômicos, em particular) quando se toma como referência a situação social ao final do século 19. Mas o simples socorrismo, ou o banal espetáculo, não pode ser tomado por ação sociocultural assim como a prática daqueles não impede que esta se concretize. O que vale destacar é o papel cada vez mais intenso que a televisão representa na construção da comunidade. A perda da função social de instituições como os partidos políticos, a igreja, a própria escola -perda não só exacerbada como provocada pela televisão em sua luta pela hegemonia da comunicação com todos os setores da sociedade- abriu um espaço imenso para a presença da TV nesse domínio e aponta para aquela que poderia ser uma de suas atuações mais relevantes numa sociedade de massas. Se é assim, a questão central não é tanto a sinceridade dos motivos para essa ação, mas uma outra que se constrói ao redor do direito de acesso da própria comunidade ao uso da TV para assim obter seus próprios fins comunitários: a construção de si mesma, como melhor entender. Um questão difícil: quem é a comunidade, afinal? Quem a representa? Uma dada religião? Uma universidade? Uma associação de bairro? A televisão pública é comunitária? A resposta, incerta, não é impossível: a questão é que é pouco enfrentada. Enquanto isso, a comunidade é antes uma comunidade destinatária, que recebe uma ação (neste caso, ação mais de socorrismo que sociocultural), e portanto uma comunidade-simulacro, do que uma comunidade que se faz a si mesma. De todo modo, a tendência é clara: a comunidade é cada vez mais objeto da televisão e pode fazer da televisão um instrumento de autoconstrução desde que tenha acesso direto ao veículo. Sem uma legislação básica, porém, o processo -passível de aceleração pela internet- pode ser no mínimo retardado. E, no limite, distorcido.


José Teixeira Coelho Netto é professor titular da ECA-USP e autor do "Dicionário Crítico de Políticas Culturais" (Ed. Iluminuras)



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