São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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CRÍTICA

O rei do acordo

ARMANDO ANTENORE

UM CERTO dr. Farhat -recém-eleito para a Câmara de São Paulo, o terceiro nome entre os vereadores mais votados na cidade- não é apenas o "advogado do Ratinho", como insistiam os panfletos, outdoors e faixas de campanha que espalhou pelas ruas. É principalmente o "rei do acordo", apelido que o apresentador do SBT gosta de lhe atribuir no ar.
O homem que recebeu 63.620 votos dos paulistanos pertence, portanto, à categoria escorregadiça dos anfíbios. Transita desenvolto por dois habitats aparentemente inconciliáveis, mas na realidade complementares: o caos e a harmonia. Frequenta a arena cotidiana do roedor com a tarefa de apaziguar "as partes" que se atracam. Ratinho provoca o bololô; dr. Farhat abranda o furdúncio.
O advogado e o animador de auditório são cúmplices. Sentam-se em lados opostos da mesma gangorra. Se o jogo de morde-e-assopra constitui a alma do programa, sabe-se agora que também rende ótimos dividendos políticos.
Na semana retrasada, dr. Farhat voltou à cena depois de passar 60 dias fora do vídeo, por exigência da legislação eleitoral. Encontrou o tumulto de sempre. Uma mulher (Regina) e o ex-marido (Evaristo) batiam boca sob os holofotes. Ela contava que, há quase três anos, Evaristo não paga pensão para os dois filhos do casal. "Não paga porque é safado. Já andou sem emprego, só que hoje tem uma fábrica de blocos. Subiu na vida. Ainda assim, nega o sustento dos meninos. Safado!" O ex-marido fazia ouvidos de mercador. Valorizava-se: "No fundo, Regina está doidinha pela reconciliação. Acontece, Ratinho, que arrumei outro chamego". A mulher perdeu o pouco de paciência que lhe restava. Avançou sobre Evaristo. E a platéia: "Porrada! Porrada!". O DJ aproveitou para tocar um forró capcioso -que, no refrão, ordenava: "Vamô quebrá tudo! Vamô quebrá tudo!". E Ratinho: "Ói, ói".
Enquanto o quilelê corria solto, dr. Farhat observava, à distância. Terno e gravata, sorrisinho no canto da boca. Às tantas, os seguranças da emissora separaram o casal. Ratinho, então, convocou o advogado: "Pode acalmar, pode acalmar. Dr. Farhat vai providenciar o acordo". Refugiaram-se os três nos bastidores -"as partes" e o conciliador. Longe dos olhos da audiência, selaram a paz.
O incauto que costuma assistir às pancadarias do programa acaba guardando a impressão de que dr. Farhat atua como uma espécie de agente civilizatório. Vários recursos cênicos contribuem para tal. Por exemplo: o advogado é o único, ali, que usa roupas sociais. "As partes", em geral, se vestem humildemente, e Ratinho exibe os trajes típicos de um showman popular. Só o dr. Farhat apresenta-se de modo solene. Ostenta os signos das autoridades.
Outra coisa: por mais que o circo pegue fogo, o advogado nunca participa diretamente do forrobodó. Não entra nos bate-bocas, não corre para apartar os contendores. O pau come, mas dr. Farhat esquiva-se do corpo-a-corpo. Conserva-se asséptico, altivo. Não se mistura.
Evita o palavreado chulo de Ratinho e jamais eleva a voz (num ambiente onde gritar é a norma). Tampouco renuncia à tarja de "doutor" -título que tanto indica poder quanto sabedoria.
É assim, como um olimpiano em terras comezinhas, que vai tecendo os acordos. Vai estabelecendo uma justiça paralela, instantânea e espetacular, que dispensa "as partes" de se embrenharem nos morosos caminhos da justiça tradicional.
A trajetória do advogado lembra a de Celso Russomano, paladino televisivo que também enveredou pela política. Há, no entanto, diferenças entre ambos.
Russomano, deputado e candidato derrotado à Prefeitura de Santo André, servia de árbitro em disputas que, na TV, ganhavam ares documentais. Era, primeiro, um repórter. Narrava os casos pendentes à maneira jornalística e só depois se travestia de juiz.
Dr. Farhat -ou José Rogério Shkair Farhat, 50, especialista em direito de família, membro do diminuto PSD e partner de Ratinho desde os tempos da Record- inscreve-se na linhagem de Jacinto Figueira Jr., o "homem do sapato branco", avô dos atuais justiceiros midiáticos. Aqui, não interessa legitimar os casos com a retórica do jornalismo. O importante é apenas carnavalizá-los. Torná-los o mais anárquicos e espalhafatosos possível, para que o contraponto da harmonia se revele indispensável. Quanto maior o caos, maior a eficácia do teatro da ordem.
Teatro da ordem. Eis o que provavelmente seduziu o eleitor paulistano, cansado das intermináveis farras na Câmara. Não à toa, os dois vereadores que se elegeram com mais votos são José Eduardo Cardozo e Havanir Tavares Nimtz. Um presidiu a CPI que investigou a máfia da propina (quer dizer: tentou arrumar a casa). A outra integra a legenda de Enéas, conhecido justamente por hastear a bandeira da disciplina. Dr. Farhat beneficiou-se da mesma lógica -ainda que, no picadeiro de Ratinho, nutra total conivência com a quizumba que parece combater.


E-mail: aluis@folhasp.com.br



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