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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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CRÍTICA

Senhores da Guerra

BIA ABRAMO

"A REVOLUÇÃO não será televisionada", dizia o poeta, músico e ativista pelos direitos civis Gil Scott-Heron num poema-manifesto (do disco "Small Talk at 125th and Lenox Ave.", 1970). "Você não vai conseguir ficar em casa, irmão(ã)/ Escapar para uma cerveja durante o comercial/ Porque a revolução não será televisionada", continua. Na perspectiva de Scott-Heron, haveria uma espontaneidade e um fator subversivo na revolução (ele referia-se à insurgência dos negros contra a sociedade racista) que a tornaria impossível de ser domada pelo tempo/espaço da TV. Já a guerra, sobretudo esta ultramoderna que está em questão, começa antes na TV do que no campo de batalha.
A julgar pelos preparativos do Pentágono, revelados por Sérgio Dávila e Alessandra Vitória na edição passada do TV Folha, está tudo pronto para que o show não decepcione ninguém: teremos imagens infinitamente superiores às que tivemos 12 anos atrás, à época da Guerra do Golfo, muita computação gráfica de última geração e, escusado dizer, nenhuma situação constrangedora, como mortos e feridos civis.
Nada, por exemplo, parecido com a confusão do 11 de setembro, especialmente nos momentos seguintes ao choque do segundo avião, quando o público foi exposto à contemplação sem mediações da tragédia. Muito menos com imagens bem mais antigas, de mais de 30 anos atrás, aquelas que mostravam os bravos soldados norte-americanos voltando do Vietnã em sacos pretos de plástico e que ajudaram a incendiar os protestos contra a guerra. Não, todos os recursos tecnológicos e ideológicos serão usados para que essa guerra seja limpa e eficiente, adequada para toda a família.
Com todo o controle e toda a profilaxia higiênica, a guerra, qualquer uma, continua sendo um negócio sujo e confuso. Se a dimensão trágica nos será negada pelas imagens que o Pentágono vai deixar que conheçamos, digamos que alguns aspectos farsescos, protagonizados pelos principais líderes do conflito, já foram mostrados pela TV.
Primeiro, foi Saddam Hussein. O iraquiano que escolheu o experiente Dan Rather, da norte-americana CBS, para conceder uma entrevista. Naquilo que parecia ser apenas um arremedo de democracia ritual, a surpresa: Saddam Hussein propõe um debate com o presidente George W. Bush (e faz graça com Rather, convidando-o para mediador). O "ditador sanguinário" troca os sinais e faz uma proposta que o presidente do "mundo livre" só podia recusar. Detalhe: a entrevista de Rather com Saddam Hussein foi assistida por 17,9 milhões de espectadores nos EUA, segundo o instituto Nielsen Media Research, que afere a audiência da TV norte-americana. Bastante, mas menos gente do que o Grammy (24,9 milhões), o documentário "Living With Michael Jackson" (27,1 milhões) e a final do "reality show" "Joe Millionaire" (34,6 milhões).
Num round intermediário, mas também emblemático, Tony Blair submeteu-se a uma coletiva com jovens do mundo todo promovida pela MTV Europa (e exibida pela MTV Brasil no final de semana passado). A partir da pergunta "a guerra é a única resposta?", a platéia bem informada, multicultural e majoritariamente pacifista tentou pressionar o primeiro-ministro inglês e principal aliado de Bush, mas os constrangimentos da produção -tempo, organização e uma incrível disciplina dos participantes- deixaram o debate frio e protocolar.
Por fim, no início da semana passada, horas antes de fazer seu ultimato a Saddam Hussein, Bush aparece nos jardins da Casa Branca, brincando com seus cães e, numa metáfora tão deselegante quanto precisa, mostrando o traseiro para o mundo inteiro ao abaixar-se para pegar uma bolinha.

E-mail: biabramo.tv@uol.com.br


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