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CRÍTICA
A ética como mercadoria
HÉLIO SCHWARTSMAN
MEU PLANO era comentar "Altas Horas", da
Rede Globo, apresentado por Serginho
Groisman. Trata-se de um programa de variedades (entretenimento e jornalismo),
com alta carga em música, que vai ao ar nas primeiras
horas de domingo. Reuni todo meu estoicismo e sacrifiquei a noite de sábado para assistir a "Altas Horas".
É claro que o leitor vai me considerar um idiota. Eu
poderia perfeitamente ter gravado o episódio para vê-lo
num horário mais convidativo. Mas, além de não saber
programar o vídeo para uma tarefa assim complexa, julguei importante assistir na madrugada a
um programa concebido para a
madrugada. É sempre um pouco
injusto analisar um fenômeno
fora de seu contexto, de seu "setting". Para encurtar a história,
não consegui chegar até o final
do espetáculo. Não porque tenha
sido assaltado por um sono irresistível, mas simplesmente porque era aborrecido demais, chato mesmo.
Em favor de "Altas Horas" e de
Groisman devo dizer que estou a
anos-luz de ser o crítico mais
qualificado para esse tipo de programação, que traz uma sucessão de bandas de que nunca ouvi
falar e cujos acordes me irritam
profundamente. A aventura na
madrugada serviu para reforçar
minha convicção de que em certos setores, notadamente na música, a humanidade é capaz de involuir aceleradamente.
"Altas Horas" tem uma virtude: uma difusa preocupação com o valor ético de seus conteúdos, cuidado este
raro na TV hoje. No episódio a que assisti, as questões
abordadas foram a violência urbana e o uso de esteróides anabolizantes em academias de ginástica.
Obviamente, o programa passava uma mensagem
contrária a ambos. É claro que, em princípio, isso é pouco para Groisman se diferenciar de outros apresentadores. Acho que nem o Ratinho nem o Sérgio Mallandro
defendem, no discurso, violência e drogas, ainda que,
segundo alguns, suas atrações possam incentivar esses
comportamentos, o que me parece rematada bobagem.
Mas não é Ratinho ou Mallandro que quero discutir.
O diferencial de "Altas Horas" estaria em seu formato
jornalístico. Em vez de exibir retórica moralista, haveria
uma apresentação "objetiva" do problema, e o próprio
telespectador tiraria suas conclusões.
Em termos filosóficos pelo menos, é balela. Essa tal de
"objetividade" é mais um desejo do que uma realidade
"objetiva". Da escolha do assunto à forma de expô-lo,
todas as decisões são tomadas por sujeitos cujas preferências e opiniões acabam por "moldar" o objeto apresentado. Afirmar que algo é objetivo é até uma forma
-segundo alguns pouco honesta- de tentar minar as
resistências naturais do telespectador. Essa, obviamente, é uma crítica que vale também para jornais e jornalistas.
A atividade jornalística se torna viável, na TV ou no
papel, com o compromisso de
mostrar, mesmo que de modo inescapavelmente enviesado, os diversos lados de uma
questão qualquer. Do choque
dialético de duas concepções
antagônicas, se tivermos um
pouco de sorte, pode surgir
algo produtivo.
Sob esse aspecto as escolhas
de "Altas Horas" no episódio
a que assisti me pareceram infelizes, porque não davam espaço para o dissenso, para a
polêmica. Até seria possível
explicar que esteróides anabolizantes são drogas úteis
para a medicina em quadros
de caquexia (desnutrição profunda) e que só um imbecil
pensaria em proibi-las. O programa, contudo, se limitou a
criticar a utilização indevida
do produto, sem explicar bem
do que estava falando. Chegou a afirmar que anabolizantes são substâncias ilícitas, um disparate. Ao final do
bloco, possivelmente alertado pela produção, o apresentador corrigiu a informação errada, que havia sido
sugerida, é claro, por um membro de banda.
Apesar de minha experiência limitada e negativa com
"Altas Horas", acredito que o programa tenha potencial. Pode melhorar se a "sintonia fina" for regulada. A
preocupação em informar jovens dentro de parâmetros
éticos merece crédito.
É claro que surge um ruído com o fato de que se pretende transformar a ética num produto vendável. Ela
deixa de ser um emaranhado de regras deduzidas de
nossa racionalidade e que deveriam orientar nosso
comportamento para tornar-se mercadoria, um "diferencial" que esse programa tem e que os outros não teriam. De fato, esse é um problema que, no limite, aniquila a própria noção de ética, ao tirá-la de seu "lugar"
próprio. Mas essa já é mais uma crítica ao mundo do
que a "Altas Horas", que apenas faz parte do mundo.
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