São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA


A ética como mercadoria



HÉLIO SCHWARTSMAN

MEU PLANO era comentar "Altas Horas", da Rede Globo, apresentado por Serginho Groisman. Trata-se de um programa de variedades (entretenimento e jornalismo), com alta carga em música, que vai ao ar nas primeiras horas de domingo. Reuni todo meu estoicismo e sacrifiquei a noite de sábado para assistir a "Altas Horas".
É claro que o leitor vai me considerar um idiota. Eu poderia perfeitamente ter gravado o episódio para vê-lo num horário mais convidativo. Mas, além de não saber programar o vídeo para uma tarefa assim complexa, julguei importante assistir na madrugada a um programa concebido para a madrugada. É sempre um pouco injusto analisar um fenômeno fora de seu contexto, de seu "setting". Para encurtar a história, não consegui chegar até o final do espetáculo. Não porque tenha sido assaltado por um sono irresistível, mas simplesmente porque era aborrecido demais, chato mesmo.
Em favor de "Altas Horas" e de Groisman devo dizer que estou a anos-luz de ser o crítico mais qualificado para esse tipo de programação, que traz uma sucessão de bandas de que nunca ouvi falar e cujos acordes me irritam profundamente. A aventura na madrugada serviu para reforçar minha convicção de que em certos setores, notadamente na música, a humanidade é capaz de involuir aceleradamente.
"Altas Horas" tem uma virtude: uma difusa preocupação com o valor ético de seus conteúdos, cuidado este raro na TV hoje. No episódio a que assisti, as questões abordadas foram a violência urbana e o uso de esteróides anabolizantes em academias de ginástica.
Obviamente, o programa passava uma mensagem contrária a ambos. É claro que, em princípio, isso é pouco para Groisman se diferenciar de outros apresentadores. Acho que nem o Ratinho nem o Sérgio Mallandro defendem, no discurso, violência e drogas, ainda que, segundo alguns, suas atrações possam incentivar esses comportamentos, o que me parece rematada bobagem. Mas não é Ratinho ou Mallandro que quero discutir.
O diferencial de "Altas Horas" estaria em seu formato jornalístico. Em vez de exibir retórica moralista, haveria uma apresentação "objetiva" do problema, e o próprio telespectador tiraria suas conclusões.
Em termos filosóficos pelo menos, é balela. Essa tal de "objetividade" é mais um desejo do que uma realidade "objetiva". Da escolha do assunto à forma de expô-lo, todas as decisões são tomadas por sujeitos cujas preferências e opiniões acabam por "moldar" o objeto apresentado. Afirmar que algo é objetivo é até uma forma -segundo alguns pouco honesta- de tentar minar as resistências naturais do telespectador. Essa, obviamente, é uma crítica que vale também para jornais e jornalistas.
A atividade jornalística se torna viável, na TV ou no papel, com o compromisso de mostrar, mesmo que de modo inescapavelmente enviesado, os diversos lados de uma questão qualquer. Do choque dialético de duas concepções antagônicas, se tivermos um pouco de sorte, pode surgir algo produtivo.
Sob esse aspecto as escolhas de "Altas Horas" no episódio a que assisti me pareceram infelizes, porque não davam espaço para o dissenso, para a polêmica. Até seria possível explicar que esteróides anabolizantes são drogas úteis para a medicina em quadros de caquexia (desnutrição profunda) e que só um imbecil pensaria em proibi-las. O programa, contudo, se limitou a criticar a utilização indevida do produto, sem explicar bem do que estava falando. Chegou a afirmar que anabolizantes são substâncias ilícitas, um disparate. Ao final do bloco, possivelmente alertado pela produção, o apresentador corrigiu a informação errada, que havia sido sugerida, é claro, por um membro de banda.
Apesar de minha experiência limitada e negativa com "Altas Horas", acredito que o programa tenha potencial. Pode melhorar se a "sintonia fina" for regulada. A preocupação em informar jovens dentro de parâmetros éticos merece crédito.
É claro que surge um ruído com o fato de que se pretende transformar a ética num produto vendável. Ela deixa de ser um emaranhado de regras deduzidas de nossa racionalidade e que deveriam orientar nosso comportamento para tornar-se mercadoria, um "diferencial" que esse programa tem e que os outros não teriam. De fato, esse é um problema que, no limite, aniquila a própria noção de ética, ao tirá-la de seu "lugar" próprio. Mas essa já é mais uma crítica ao mundo do que a "Altas Horas", que apenas faz parte do mundo.


Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: Presentes
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.