São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Quando o ufanismo rima com ...

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Galvão Bueno não é apenas mais um locutor esportivo. Ele é hoje o porta-voz oficial do ufanismo verde-amarelo. Também pelo fato de estar na Globo, roubou um lugar que já pertenceu um dia a Luciano do Valle, provavelmente o precursor na arte de transformar eventos do esporte em ocasião para "brasileiradas".
Mas, se a capacidade de Luciano do Valle para dizer asneiras, cívicas e outras, continua sem concorrentes à vista, com Galvão Bueno o ultraufanismo tem se revelado algo mais sério, que não se limita à manifestação exacerbada do nacionalismo como estratégia de animação das massas.
Desde a morte de Ayrton Senna, toda a energia de Galvão se debruçou sobre o futebol. Na sua locução grave, enfática, atenorada, cada jogo da seleção brasileira se converte em "batalha épica contra legiões bárbaras", como bem disse recentemente José Geraldo Couto, colega desta Folha.
O talento dramático e a competência técnica do locutor, inegáveis para o que se presta, estão a serviço de uma finalidade que vai além da narração: identificar num corpo único, numa imagem idealizada do país, a seleção, a Globo e a pátria, embaralhando-os e enaltecendo-os reciprocamente.
Estamos, evidentemente, diante de uma versão reciclada da ideologia nacional-popular, como já disse outro colega, o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, mas cujo traço abertamente autoritário ainda não foi devidamente posto em relevo. Exagero? Tomem-se alguns exemplos da transmissão do último domingo da partida entre Brasil e Uruguai.
Galvão Bueno açulou o espectador brasileiro contra o Uruguai. Já havia feito o mesmo contra a Argentina, estimulando da maneira mais primitiva uma rivalidade de efeitos perniciosos. A novidade, no caso do jogo final, ficou por conta da terminologia usada pelo locutor, realmente espantosa. Ao mesmo tempo em que enaltece a família, célula da sociedade, Galvão Bueno deixa transparecer um ideal higienizador. É quando o ufanismo rima com...
Cito algumas passagens mais significativas, grifando em letras itálicas os trechos que fazem lembrar de coisas nada boas:
1ª cena: Um rádio de pilha atinge o ombro do goleiro Dida, no final do primeiro tempo. Galvão Bueno: "O Dida não é de fingir. Atrás do gol está a torcida uruguaia. Olha aí, foi um rádio de pilha, a Globo mostra tudo. A diferença é a seguinte: a maior parte da torcida brasileira que está aqui é formada de famílias, que vieram principalmente do oeste do Paraná, que estavam acompanhando a seleção brasileira. Não teve nenhum problema em nenhum jogo. Grande parte da torcida uruguaia é dessa torcida que traz faixa de torcida organizada -Barra Brava-, aquele pessoal que devia estar preso, não devia estar em estádio de futebol. Eles criam problemas seriíssimos (...) A diferença muito clara e muito nítida da espécie de torcedor que está aqui torcendo para o Brasil e da espécie de torcedor que está aqui torcendo para o Uruguai. Não que não tenhamos famílias uruguaias, claro..."
2ª cena: Termina o primeiro tempo. O repórter na arquibancada entrevista três torcedoras adolescentes. Antes de devolver a palavra a Galvão Bueno, afasta com a mão a blusa aberta de uma das garotas, sob a qual há um top, e diz: "E apesar do frio, Galvão, barriguinha de fora".
Galvão Bueno assume a palavra: "É aquela diferença que a gente estava falando do torcedor brasileiro. São famílias, são moças, são crianças, famílias com pai, mãe, avó, pessoas que atravessaram a fronteira, que vieram para cá ou que moram por aqui. É uma torcida bem diferenciada, bem gostosa de ser vista, de sentir, porque é uma torcida sadia essa que a gente tem acompanhado em todos os jogos da Copa América.
3ª cena: Fim do intervalo comercial. Antes do reinício da partida, a câmera focaliza uma criança com a camisa da seleção. Galvão reitera: "Aí a torcida brasileira, a sadia torcida brasileira, que beleza, a Copa América inteira". A câmera passeia pela torcida e, num lapso?, fixa a imagem numa faixa que diz: "Galvão, vá pentear macaco". O locutor reage rápido, procurando contornar o mal-estar: "Aí a torcida brasileira, o carinho, a brincadeira, a torcida sempre junto com a Globo, sempre junto com a seleção brasileira".
4ª cena: Fim de jogo. O Brasil é campeão. A câmera focaliza uma menina com o rosto pintado de verde e amarelo que chora, e Galvão, em transe patriótico, diz: "Aí o rosto pintado, o orgulho de trazer o verde-amarelo, de fazer a festa, mas de fazer a festa com alegria, com educação, com civilidade, como teria que ser sempre nos estádios de futebol. A lágrima nos olhos, de uma menina que talvez nunca tenha pensado em vir a um estádio antes da Copa América. É uma nova torcida que surge."
Ainda é preciso dizer do que é que se está falando?


E-mail: fbsi@uol.com.br



Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.