|
Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Quando o ufanismo rima com ...
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
Galvão Bueno não é apenas
mais um locutor esportivo. Ele é
hoje o porta-voz oficial do ufanismo verde-amarelo. Também pelo
fato de estar na Globo, roubou
um lugar que já pertenceu um dia
a Luciano do Valle, provavelmente o precursor na arte de transformar eventos do esporte em ocasião para "brasileiradas".
Mas, se a capacidade de Luciano
do Valle para dizer asneiras, cívicas e outras, continua sem concorrentes à vista, com Galvão
Bueno o ultraufanismo tem se revelado algo mais sério, que não se
limita à manifestação exacerbada
do nacionalismo como estratégia
de animação das massas.
Desde a morte de Ayrton Senna,
toda a energia de Galvão se debruçou sobre o futebol. Na sua locução grave, enfática, atenorada,
cada jogo da seleção brasileira se
converte em "batalha épica contra legiões bárbaras", como bem
disse recentemente José Geraldo
Couto, colega desta Folha.
O talento dramático e a competência técnica do locutor, inegáveis para o que se presta, estão a
serviço de uma finalidade que vai
além da narração: identificar num
corpo único, numa imagem idealizada do país, a seleção, a Globo e
a pátria, embaralhando-os e enaltecendo-os reciprocamente.
Estamos, evidentemente, diante
de uma versão reciclada da ideologia nacional-popular, como já
disse outro colega, o jornalista
Marcos Augusto Gonçalves, mas
cujo traço abertamente autoritário ainda não foi devidamente
posto em relevo. Exagero? Tomem-se alguns exemplos da
transmissão do último domingo
da partida entre Brasil e Uruguai.
Galvão Bueno açulou o espectador brasileiro contra o Uruguai.
Já havia feito o mesmo contra a
Argentina, estimulando da maneira mais primitiva uma rivalidade de efeitos perniciosos. A novidade, no caso do jogo final, ficou por conta da terminologia
usada pelo locutor, realmente espantosa. Ao mesmo tempo em
que enaltece a família, célula da
sociedade, Galvão Bueno deixa
transparecer um ideal higienizador. É quando o ufanismo rima
com...
Cito algumas passagens mais
significativas, grifando em letras
itálicas os trechos que fazem lembrar de coisas nada boas:
1ª cena: Um rádio de pilha atinge
o ombro do goleiro Dida, no final
do primeiro tempo. Galvão Bueno: "O Dida não é de fingir. Atrás
do gol está a torcida uruguaia.
Olha aí, foi um rádio de pilha, a
Globo mostra tudo. A diferença é
a seguinte: a maior parte da torcida brasileira que está aqui é formada de famílias, que vieram
principalmente do oeste do Paraná, que estavam acompanhando
a seleção brasileira. Não teve nenhum problema em nenhum jogo. Grande parte da torcida uruguaia é dessa torcida que traz faixa de torcida organizada -Barra Brava-, aquele pessoal que
devia estar preso, não devia estar
em estádio de futebol. Eles criam
problemas seriíssimos (...) A diferença muito clara e muito nítida
da espécie de torcedor que está
aqui torcendo para o Brasil e da
espécie de torcedor que está aqui
torcendo para o Uruguai. Não
que não tenhamos famílias uruguaias, claro..."
2ª cena: Termina o primeiro
tempo. O repórter na arquibancada entrevista três torcedoras adolescentes. Antes de devolver a palavra a Galvão Bueno, afasta com
a mão a blusa aberta de uma das
garotas, sob a qual há um top, e
diz: "E apesar do frio, Galvão, barriguinha de fora".
Galvão Bueno assume a palavra:
"É aquela diferença que a gente
estava falando do torcedor brasileiro. São famílias, são moças, são
crianças, famílias com pai, mãe,
avó, pessoas que atravessaram a
fronteira, que vieram para cá ou
que moram por aqui. É uma torcida bem diferenciada, bem gostosa de ser vista, de sentir, porque
é uma torcida sadia essa que a
gente tem acompanhado em todos os jogos da Copa América.
3ª cena: Fim do intervalo comercial. Antes do reinício da partida, a câmera focaliza uma criança com a camisa da seleção. Galvão reitera: "Aí a torcida brasileira, a sadia torcida brasileira, que
beleza, a Copa América inteira".
A câmera passeia pela torcida e,
num lapso?, fixa a imagem numa
faixa que diz: "Galvão, vá pentear
macaco". O locutor reage rápido,
procurando contornar o mal-estar: "Aí a torcida brasileira, o carinho, a brincadeira, a torcida sempre junto com a Globo, sempre
junto com a seleção brasileira".
4ª cena: Fim de jogo. O Brasil é
campeão. A câmera focaliza uma
menina com o rosto pintado de
verde e amarelo que chora, e Galvão, em transe patriótico, diz: "Aí
o rosto pintado, o orgulho de trazer o verde-amarelo, de fazer a
festa, mas de fazer a festa com
alegria, com educação, com civilidade, como teria que ser sempre
nos estádios de futebol. A lágrima
nos olhos, de uma menina que
talvez nunca tenha pensado em
vir a um estádio antes da Copa
América. É uma nova torcida que
surge."
Ainda é preciso dizer do que é que
se está falando?
E-mail: fbsi@uol.com.br
Próximo Texto: Filmes de hoje Índice
|