São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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CRÍTICA

Os astronautas de "A Muralha"

Esther Hamburger

UM CERTO frisson acompanha o surgimento de novas tecnologias. Mais de 50 anos depois da invenção da TV, as múltiplas relações possíveis de se estabelecer entre o que então se apresentava como um novo meio e a literatura oferecem terreno fértil à especulação sobre as (in)determinações da tecnologia sobre a vida social. "A Muralha" constitui um caso em que a minissérie replica as fragilidades do romance.
O advento da televisão nos Estados Unidos, como mostra a pesquisa de Lynn Spigel, gerou esperanças e temores. Há os que viram na nova tecnologia um potencial de integração e interação universal sem precedentes. Há os que viram no novo aparelho o desvirtuar da vida familiar, uma presença estranha a invadir os espaços domésticos mais íntimos. Ou os que temiam que a exposição prolongada fizesse mal para a vista.
Mulheres temiam o encanto que seus maridos demonstravam pelo glamour das atrizes de TV. Homens se viam apreensivos diante da abundância de informações de consumo fácil que a televisão punha à disposição de suas mulheres e filhos. Temia-se os males que a imagem eletrônica faria à vista. Para não falar da preocupação, sempre renovada, de que a TV viesse a substituir o hábito da leitura.
Passados 50 anos, a televisão está incorporada ao cotidiano no Brasil e nos Estados Unidos. E longe de se opor à linguagem escrita, a TV se apropria dela. O relançamento de "A Muralha" é mais um exemplo da utilização da literatura pela teledramaturgia brasileira. "A Muralha" faz parte de uma lista nada desprezível de obras literárias adaptadas para seriados televisivos, assunto da tese de mestrado de Hélio Guimarães, trabalho que levantou uma lebre que merece a atenção.
As histórias literárias podem funcionar como evidência da possibilidade de alguma "nobreza" na TV. Por sua vez, os títulos televisivos oferecem chance de venda em massa a obras literárias. Mas essa equação simples não esgota a questão. Resta desvendar os critérios que presidem a escolha dos títulos a serem adaptados. Na lista de adaptações literárias para televisão, Dinah Silveira de Queiroz comparece ao lado de autores fundantes da nossa literatura, como Machado de Assis, Jorge Amado e Guimarães Rosa -uma lista, como se vê, bastante diversificada.
Romances clássicos forneceram o repertório que justificou a introdução da novela das seis da Globo. Os títulos escolhidos para o horário considerado "cor-de-rosa" eram histórias que se passavam em tempos remotos. Machado encontrou aqui aceitação ampla, especialmente as obras da primeira fase do escritor, sintomaticamente centradas em personagens femininas. Já Jorge Amado e Guimarães Rosa, autores mais contemporâneos, mereceram novelas e minisséries nos horários mais adultos e menos água-com-açúcar.
"A Muralha" faz parte de um outro conjunto. O romance, que inspirou pelo menos três seriados televisivos, oportunamente republicado pela editora Record, é um bom exemplo de escolha convencional e recorrente. Nos anos pré-70, havia uma preferência por histórias remotas no tempo e/ou no espaço. Ultimamente a TV volta a promover o formato supostamente capaz de oferecer alguma calma para compensar a instabilidade do cotidiano.
A minissérie "A Muralha" faz sucesso entre públicos diversos. Alguns se interessam pela história dos índios, habitantes exóticos, nativos das terras de Piratininga. Outros se encantam com a saga romântica das donzelas que viviam agruras e aventuras "reais". A legitimidade do drama está dada por referências a eventos como a Guerra dos Emboabas ou a práticas como as entradas e bandeiras.
No caso de "A Muralha", livro e minissérie são pobres. Em ambos a história da província constitui mero pano de fundo para uma trama que pouco ou nada acrescenta à estrutura romântica e paradigmática do melodrama, tal como a define Ismail Xavier. Longe de conseguir penetrar os mistérios do cotidiano nos tempos em que São Paulo não possuía o poder e o glamour que alcançaria mais tarde, o romance apresenta um panorama superficial que não está à altura dos currículos escolares. Nada contra o romance histórico, gênero capaz de produzir conhecimento e emoção, como mostram autores como Gore Vidal.
Mas em "A Muralha" há pouca interação entre fundo e figura. É como se a história fornecesse um cenário descolado das relações humanas que o povoam. As vestimentas típicas, os cenários tribais, talvez estimulem imaginações sedentas de conhecer histórias antigas. Mas os personagens vestem aquelas roupas típicas como poderiam vestir trajes de astronautas. A temporalidade e a espacialidade não estão entranhadas no drama.
Tecnologias não determinam conteúdos ou sociabilidades. Bons livros podem, como já o fizeram inúmeras vezes, gerar boas adaptações televisivas. No caso de "A Muralha", a fragilidade do livro está replicada na série.


E-mail: ehamb@uol.com.br


Excepcionalmente nesta edição o artigo de Fernando de Barros e Silva não é publicado

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