São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998

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CRÍTICA
Tal caipira, qual Brasil?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

A mancada do time de Zagallo na última terça-feira foi como que obliterada, encoberta pela comoção provocada pela morte do cantor Leandro. A frustração da derrota pareceu pequena, desimportante, fútil até, diante das cenas de desconsolo coletivo exibidas pela TV. Não me lembro de ter visto nada parecido desde as mortes de Ayrton Senna e dos Mamonas. Nenhuma novidade, dirá o leitor.
Vistas friamente, com a objetividade que se pede ao jornalista ou, ainda, com a distância que é de bom tom o crítico preservar quando se debruça sobre algum fenômeno da alma popular, tais cenas sugerem um Carnaval às avessas, um ritual capaz de hipnotizar um país quase inteiro, do qual não se sabe ao certo quanto há de explosão espontânea e quanto foi produzido ou amplificado pela TV.
Histeria e desamparo, vistos desse ângulo, seriam pouco mais do que uma curiosidade antropológica, um espetáculo desse povo besta e pobre chorando a morte de mais um ídolo.
A insistência das imagens explorando os flagrantes de desespero e lágrimas, o texto melado e repleto de clichês dos apresentadores da maioria dos telejornais, a inconsistência e a facilidade das próprias canções da dupla repetidas à exaustão -tudo, enfim, contribui para que o conjunto nos pareça sentimentalóide, piegas, quase irritante.
Sem desconsiderar tudo isso, a reação coletiva à morte de Leandro provocou em mim no entanto um sentimento forte de identificação e de solidariedade, como se um pedaço muito sério do Brasil estivesse sendo exposto na banalidade daqueles rostos anônimos.
De onde vem o apelo popular dessa canção neosertaneja? Para nós, pessoas urbanas, mais ou menos letradas e supostamente esclarecidas, essa música soa como uma espécie de aberração, uma junção esdrúxula da cultura da roça com a indústria do entretenimento de massas. Mas não seria essa música, construída como que sobre os escombros de um universo caipira que vai se extinguindo, que melhor exprimiria a situação de milhões de brasileiros pobres, desenraizados de sua cultura de origem, vivendo há décadas sem referências ou identidade definidas, largados à própria sorte, amontoados e sem perspectiva de vida digna nas periferias das grandes cidades?
Assim como a morte dos Mamonas chocou a todos porque, como bem disse Marcelo Coelho, foi como se crianças tivessem morrido, a morte de Leandro parece privar milhões de pessoas do conforto de um passado, por miserável ou simplório que seja, que lhes foi arrancado pelo Brasil dito urbano, sem que no entanto elas tivessem sido integradas à cidadania ou ao consumo que lhes prometiam.
Na década de 50, quando o Brasil da euforia nacional-desenvolvimentista se urbanizava a toque de caixa e parecia ir encontrando uma maneira própria de integrar em torno de um projeto nacional o arcaico e o moderno, a cultura local e os ganhos da civilização, o crítico Antonio Candido escreveu um belo livro, "Os Parceiros do Rio Bonito", sua tese de doutorado sobre a cultura caipira paulista e a transformação de seus meios de vida. Como se sabe, a aposta nessa civilização brasileira foi frustrada e, até segunda ordem, não se vislumbram as chances de sua realização, a menos para quem se ilude com frango e dentadura.
Seria de grande interesse se algum intelectual ainda tivese a mesma disposição da geração de Antonio Candido de olhar para o país em que vive e o estudasse, por exemplo, à luz dessa cultura caipira desintegrada e reincorporada pelo entretenimento de massa. Mas nossos horizontes intelectuais hoje parecem tão acanhados que não conseguimos nem mais enxergar os problemas nos quais tropeçameos diariamente. Tristes dias, os atuais. Como já escreveu alguém, há muito anos: "Felizes são os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das trilhas que lhe são abertas e que podem seguir. Felizes os tempos em que os caminhos são iluminados pela luz das estrelas. Para eles, tudo é novo e, no entanto, familiar; tudo significa aventura e, entretanto, tudo lhes pertence. O mundo é vasto, mas apesar disso, eles estão em casa, pois o fogo que queima em suas almas é da mesma natureza das estrelas".


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