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CRÍTICA
Tal caipira, qual Brasil?
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
A mancada do time de
Zagallo na última terça-feira foi como que
obliterada, encoberta pela comoção provocada
pela morte do cantor
Leandro. A frustração da
derrota pareceu pequena, desimportante, fútil
até, diante das cenas de
desconsolo coletivo exibidas pela TV. Não me
lembro de ter visto nada
parecido desde as mortes
de Ayrton Senna e dos
Mamonas. Nenhuma novidade, dirá o leitor.
Vistas friamente, com a
objetividade que se pede
ao jornalista ou, ainda,
com a distância que é de
bom tom o crítico preservar quando se debruça sobre algum fenômeno da alma popular, tais
cenas sugerem um Carnaval às avessas, um ritual capaz de hipnotizar
um país quase inteiro, do
qual não se sabe ao certo
quanto há de explosão
espontânea e quanto foi
produzido ou amplificado pela TV.
Histeria e desamparo,
vistos desse ângulo, seriam pouco mais do que
uma curiosidade antropológica, um espetáculo
desse povo besta e pobre
chorando a morte de
mais um ídolo.
A insistência das imagens explorando os flagrantes de desespero e lágrimas, o texto melado e
repleto de clichês dos
apresentadores da maioria dos telejornais, a inconsistência e a facilidade das próprias canções
da dupla repetidas à
exaustão -tudo, enfim,
contribui para que o conjunto nos pareça sentimentalóide, piegas, quase irritante.
Sem desconsiderar tudo isso, a reação coletiva
à morte de Leandro provocou em mim no entanto um sentimento forte
de identificação e de solidariedade, como se um
pedaço muito sério do
Brasil estivesse sendo exposto na banalidade daqueles rostos anônimos.
De onde vem o apelo
popular dessa canção
neosertaneja? Para nós,
pessoas urbanas, mais ou
menos letradas e supostamente esclarecidas, essa música soa como uma
espécie de aberração,
uma junção esdrúxula da
cultura da roça com a indústria do entretenimento de massas. Mas não seria essa música, construída como que sobre os escombros de um universo
caipira que vai se extinguindo, que melhor exprimiria a situação de
milhões de brasileiros
pobres, desenraizados de
sua cultura de origem, vivendo há décadas sem referências ou identidade
definidas, largados à própria sorte, amontoados e
sem perspectiva de vida
digna nas periferias das
grandes cidades?
Assim como a morte
dos Mamonas chocou a
todos porque, como bem
disse Marcelo Coelho, foi
como se crianças tivessem morrido, a morte de
Leandro parece privar
milhões de pessoas do
conforto de um passado,
por miserável ou simplório que seja, que lhes foi
arrancado pelo Brasil dito urbano, sem que no
entanto elas tivessem sido integradas à cidadania
ou ao consumo que lhes
prometiam.
Na década de 50, quando o Brasil da euforia nacional-desenvolvimentista se urbanizava a toque
de caixa e parecia ir encontrando uma maneira
própria de integrar em
torno de um projeto nacional o arcaico e o moderno, a cultura local e os
ganhos da civilização, o
crítico Antonio Candido
escreveu um belo livro,
"Os Parceiros do Rio
Bonito", sua tese de
doutorado sobre a cultura caipira paulista e a
transformação de seus
meios de vida. Como se
sabe, a aposta nessa civilização brasileira foi frustrada e, até segunda ordem, não se vislumbram
as chances de sua realização, a menos para quem
se ilude com frango e
dentadura.
Seria de grande interesse se algum intelectual
ainda tivese a mesma disposição da geração de
Antonio Candido de
olhar para o país em que
vive e o estudasse, por
exemplo, à luz dessa cultura caipira desintegrada
e reincorporada pelo entretenimento de massa.
Mas nossos horizontes
intelectuais hoje parecem
tão acanhados que não
conseguimos nem mais
enxergar os problemas
nos quais tropeçameos
diariamente. Tristes dias,
os atuais. Como já escreveu alguém, há muito
anos: "Felizes são os
tempos que podem ler no
céu estrelado o mapa das
trilhas que lhe são abertas e que podem seguir.
Felizes os tempos em que
os caminhos são iluminados pela luz das estrelas. Para eles, tudo é novo
e, no entanto, familiar;
tudo significa aventura e,
entretanto, tudo lhes
pertence. O mundo é vasto, mas apesar disso, eles
estão em casa, pois o fogo
que queima em suas almas é da mesma natureza
das estrelas".
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