São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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CRÍTICA

Um humor casseta, sem dúvida

EUGÊNIO BUCCI

É POSSÍVEL dizer que, de algum modo, há sempre uma rima entre humor e dor. Nos filmes de Charles Chaplin ou nos filmes de Woody Allen, o espectador ri de alguém que sofre com o próprio fracasso amoroso ou com a derrota econômica, dois dragões que intimidam o cidadão médio a cada passo que ele dá. Ou que ele não dá. Protegido pelo escuro do cinema, o espectador ri de um personagem. Na verdade, ri de si mesmo, e aí é que está a graça. É possível que, rindo assim, ele reconheça em si, inconscientemente, um sofrimento que mal é capaz de admitir. É possível que, transformando seus dragões pessoais em piadas, se sinta mais leve e mais liberto. Rir não é se esconder dos dragões, é driblá-los. Por isso, creio, o melhor humor tende a rimar com a dor. Rima com ela para ultrapassá-la. Rindo do tipo ridículo que vê na tela, o sujeito entrevê a condição humana que nele existe, para além do ridículo, e então ri mais, talvez porque se perceba mais humano, exatamente por ser ridículo de vez em quando.
Feita essa introdução, talvez um tanto longa, um tanto melosa e um tanto ridícula, deixo de lado as comédias do cinema e volto os olhos para os programas humorísticos da TV brasileira. Também nela, humor rima com dor. Com uma diferença, no entanto: na TV, a função do humor parece ser não a de superar, mas a de aprofundar a dor. Vamos a isso.
Não existe, no Brasil, um programa que possa ser posto à altura do humor de Chaplin, de Woody Allen ou do grupo Monty Python. Talvez Denise Fraga no "Fantástico" tenha alguma leveza, mas suas aparições são mínimas e acabam diluídas. "Os Normais" é um programa que tem nos diálogos uma inteligência acima da média, mas é grosso, falta-lhe a delicadeza sem a qual a graça não flutua. Quanto aos programas humorísticos propriamente ditos, é impossível encontrar algum que não se baseie em escarnecer os pobres, os analfabetos, os negros, os homossexuais etc. O mecanismo parece ser o mesmo dos melhores filmes cômicos: o espectador é chamado a rir daquilo que o envergonha e que o machuca. A questão é que, nos programas da nossa TV, o espectador não ri para redimir o personagem que se debate em seu ridículo, mas para reiterar a opressão que pesa contra esse mesmo personagem. É uma diferença tênue, quase imperceptível, mas dolorosa.
Na TV, o humor rima com dor, aprofunda-a, e rima com preconceito. Rima com preconceito de cor. E com outros preconceitos. É por isso que, diante da TV, ri dos negros quem não é negro, ri dos gays quem não é gay, ri dos pobres quem não é pobre (ou pensa que não é). Ri deles quem quer proclamar, às gargalhadas, jamais será como eles. É o riso como recusa e chibatada. Esses quadros humorísticos não humanizam o que há de ridículo em todos nós, mas ridicularizam e espezinham o que há de humano naquele triste "judas" que aparece ali.
Há quem diga que "Casseta & Planeta" mudou esse cenário. Não mudou. "Casseta & Planeta" é o melhor humorístico da TV brasileira, de longe, mas, como os outros, é preconceituoso e violento. Por ser mais irreverente que os demais, conseguiu se impor dentro da paisagem ressequida dos piadistas pré-históricos (de corpo, de espírito e de ideologia). Mas logo se especializou no ramo da sátira chapa-branca, dedicando-se a fazer propaganda engraçadinha das estréias da Globo. É por demais previsível. Estreou "O Beijo do Vampiro"? Tome lá uma sátira oficial de seus personagens. Estreou outra novela? Lá vem o mesmo expediente. Fora isso, é irreverentemente bruto, embrutecido e brutal. A gente vê, a gente ri, mas a gente sabe: "Casseta & Planeta" não é um programa politicamente incorreto, é só um programa reacionário.
"Casseta & Planeta", "A Praça é Nossa", tanto faz. A qualidade do humor na TV segue baixa e estreita. E casseta.


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