São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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CRÍTICA
Notas sobre um padrão de qualidade


FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso embrutecer essa sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas". (Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, em 1974)

Walter Clark foi, ao lado de Boni, um dos dois grandes responsáveis pela implantação do chamado Padrão Globo de Qualidade. Quando Clark assumiu a direção-geral da emissora, em fins de 65, a Globo era um canal menor e deficitário, com poucos meses de vida -foi ao ar pela primeira vez em abril daquele ano. Quando Clark saiu da emissora, em maio de 77, a Globo já era um império em rede nacional e tinha o controle monopolístico da TV brasileira.
Entender um pouco o que é esse padrão de qualidade se torna uma questão crucial no momento em que a Globo o evoca para preservar sua liderança e reagir ao sucesso comercial de programas como os de Ratinho, Márcia e assemelhados, tidos como vulgares, apelativos, popularescos, sujos demais para caber na equação global.
A questão da "sujeira dos outros" e da "limpeza da Globo" é central para se entender esse padrão de qualidade. Não se trata, como se verá, de uma metáfora qualquer, e não é à toa que essa imagem apareça de forma crítica na fala iluminada de Vianinha.
O padrão Globo se consolidou mais ou menos entre 69 e 73, anos mais fúnebres do regime militar, vendidos pelo discurso oficial como o período do "milagre brasileiro", do qual o padrão Globo foi, por assim dizer, uma espécie de cimento simbólico e ideológico.
Algumas datas importantes: em 1º de setembro de 69, estreava o "Jornal Nacional", o primeiro telejornal da televisão brasileira exibido ao vivo em rede nacional; em junho de 70, a Globo iniciava sua hegemonia no campo da teledramaturgia com "Irmãos Coragem", novela de Janete Clair, sucesso estrondoso que ficou no ar até julho de 71; em 31 de março de 72, data do oitavo aniversário do golpe de 64, estreava na Globo a cor na TV brasileira, justamente durante as comemorações militares na Festa da Uva, em Caxias do Sul.
Participaram desse desfile colorido vários artistas, muitos deles ainda hoje na ativa, entre os quais Francisco Cuoco, Tônia Carrero e Jô Soares, sendo que os dois últimos assistiram parte da festa como convidados de honra, sentados ao lado do general Garrastazu Médici e de sua mulher, dona Sila.
Por fim, em 7 de agosto de 73 estreava o "Fantástico, o Show da Vida", que acaba de completar 25 anos. "Jornal Nacional", novelas, "Fantástico" -esse tripé ocupa até hoje o centro da programação da Globo, o que corrobora a idéia de um padrão que foi forjado naqueles anos.
Em que consiste? Numa espécie de obsessão técnica, de assepsia plástica que permite separar o popular do popularesco; ou, parafraseando Vianinha, numa espécie de paisagismo, de projeto Cingapura Eletrônico que esconde a favela, que "limpa as coisas".
Num depoimento do início dos anos 80 à Funarte, que consta do livro "Televisão - O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira", de Carlos Alberto Pereira e Ricardo Miranda, o então diretor da Divisão de Análise e Pesquisa da Globo, Homero Sanchez, relaciona essa assepsia ao padrão Globo: "A quase obsessão que o Boni tem pela limpeza da imagem é tão grande que a imprensa explorou muito isso e se confunde a qualidade técnica, a qualidade plástica da televisão com a mentalidade. E se diz que o padrão Globo de qualidade é uma coisa amorfa, embora seja muito bonita, é Hollywood".
Limpeza, obsessão técnica, Hollywood... Como não relacionar isso ao sonho militar da integração nacional, do Brasil grande, perfeita aos anseios consumistas de uma classe média emergente, que passava a confundir a aquisição de automóveis, geladeiras e TVs em cores com o ingresso na modernidade?
Encurtando muito o argumento e saltando do milagre dos militares ao sonho do Real, pergunto se a atual privatização do noticiário da Globo e a transformação do seu jornalismo numa espécie de sucursal do "Fantástico", onde tudo se bossaliza e vira um "show da vida" (a exemplo do caso Sasha), não correspondem aos anseios de uma sociedade que está confundindo modernidade com Miami, telefone celular e carro importado.
O fim da era Boni e a ascensão de Marluce Dias da Silva, uma executiva inóspita de lojas de departamento, significa entre outras coisas que o centro nervoso da emissora passou da criação para a tesouraria. O padrão Globo de qualidade, que serviu para esconder a tragédia por trás do milagre brasileiro, volta à cena, agora como farsa.


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