São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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BARRADO NA GLOBO
"Fora do Ar' revela truques da TV

ESTHER HAMBURGER
especial para a Folha

Se você acha que a mulata Globeleza só sabe sambar e exibir sua nudez em tempos de Carnaval, está muito enganado. Ela pode também proferir com desenvoltura um belo discurso acadêmico sobre globalização. E se você pensa que Carla Perez só desempenha no rebolado também errou, ela é capaz de surpreender com um discurso sobre a força da gravidade nos corpos.
O discurso escolado das duas dançarinas foi possível graças à existência de um instrumento essencial aos locutores e políticos, mas invisível para o público: o teleprompter, tema de um piloto do programa "Fora do Ar", apresentado por Marcelo Tas, que a Rede Globo produziu originalmente para o "Fantástico", mas que ironicamente não vai ao ar.
"Fora do Ar", como o nome sugere, discute instrumentos de produção da notícia e do discurso político que ficam atrás das câmeras. O piloto do programa que a Folha teve acesso mostra, por exemplo, que, quando não faz comentários sobre os bailarinos do Bolshoi, Pedro Bial lê o texto que apresenta as atrações do próprio "Fantástico" com a ajuda do tal teleprompter.
Infelizmente a emissora desistiu de exibir o quadro após tentativa de adaptá-lo para o "Jornal da Globo". A fita pirata do programa que começa a circular de mão em mão pode vir a se tornar um objeto "cult".
Foi de mão em mão que ficou conhecido o "South Park", desenho animado de produção caseira e independente que hoje se encontra entre os maiores sucessos da TV a cabo americana e que o canal Multishow exibe no Brasil desde maio.
"Fora do Ar" marca a volta do Marcelo Tas entrevistador, que fez escola como o repórter Ernesto Varela.
Além de locutores para quem o teleprompter é instrumento necessário ao desempenho da profissão, "Fora do Ar" mostra entrevistas com políticos. Surpreendendo candidatos ao tratar de temas distantes das polêmicas questões candentes que dominam o cenário, Tas obtém declarações reveladoras.
ACM compartilha com o repórter o seu ritual de descontração diária à frente da novela das oito em seu gabinete. Paulo Maluf, explica com toda a boa vontade os mecanismos que permitem "lapidar" qualquer pessoa para que ela se transforme em político. Já Leonel Brizola deixa claro que para ele, política implica em convicção, por isso políticos não deveriam usar o teleprompter, instrumento profissional dos apresentadores de televisão. Mas Brizola admite que se preocupa com o visual. Veste sempre uma discreta camisa azul.
E em um grande momento do show, a equipe do programa leva o teleprompter para uma praça carioca, onde transeuntes são instruídos, recebem um banho de loja e toques de empostação de voz para interpretar discursos proferidos originalmente por políticos como Benedita da Silva, Jânio Quadros e Fernando Collor.
Moral da história, apresentada textualmente por Tas logo de início: nem tudo que a televisão mostra é de verdade. O que aparece como a cabeça do ator-apresentador-criador, não passa de uma imagem eletrônica, composta de milhões de pontinhos, e que pode ser retirada e devolvida eletronicamente, sem dor ou sangramento.
Marcelo decapitado explica ao telespectador que o que estamos vendo não necessariamente está acontecendo no estúdio.
Os espectadores brasileiros são mestres em decodificar as convenções audiovisuais da televisão. Pesquisadores de mercado sabem que o público detecta as sutilezas do proselitismo político. Mas o público ainda desconhece as peças que constroem a gramática televisiva.
"Fora do Ar" é um programa de TV iluminista, se é que tal heterodoxia é possível.
As sequências com políticos podem ser hilárias, mas não trazem muita novidade. A ousadia de "Fora do Ar" está em ensinar um pouco da gramática televisiva. "Fora do Ar" torna segredos desse popular meio de comunicação acessíveis ao público que cada vez mais sonha com uma oportunidade de participar do espetáculo.
"Fora do Ar" tem os ingredientes de um programa inteligente e popular, uma combinação que surpreendentemente, ao que parece, ainda assusta. O programa tem o formato dos "reality shows" sem explorar intimidades e sensacionalismos.
Um país em que poucos lêem e muitos vêem TV só teria a ganhar com um esforço estimulante de alfabetização televisual como esse.


E-mail: ehamb@uol.com.br



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