Descrição de chapéu

Alala x

Homem de saia é machismo? Branco fantasiado de índio é etnocentrismo?

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Deus —em quem não acredito— e meus três ou quatro leitores —tenho fé que existam— são testemunhas do quanto eu já usei meu espaço de cronista para defender o politicamente correto. A luta pelos direitos das minorias é um avanço civilizatório e desaprovar a manifestação dos preconceitos faz parte dela. Melhor os racistas sentirem-se constrangidos do que os negros. Melhor reprimir o machismo do que as mulheres. E por aí vai.

De uns tempos pra cá, no entanto, o discurso politicamente correto parece ter perdido um pouco a noção do que é lutar pelos direitos das minorias e o que é ver cabelo em ovo. E proibir o cabelo no ovo. Porque o cabelo desrespeita os direitos do ovo. A ovacidade calva do ovo. Numa sociedade que estigmatiza os que não têm cabelo. Principalmente as mulheres sem cabelo. Aliás, antes de discutir o cabelo no ovo, temos que discutir o artigo o. Chamemos de x  ovx. Chamemxs de x  ovx. Não, não chamemos de nada, porque chamar o ovo de ovo já é impor a ele uma existência de ovo, com todas as conotações sociais que a ideia de ovo traz. E se o ovo quiser ser um dado? Ou uma nuvem? Diante do ovo, resta a nós que não somos ovo apenas o respeitoso silêncio.

O último cabelo em ovo a que tive acesso foi um vídeo chamado Fantasias para não usar neste Carnaval, que veio encalhar na curva de rio sujo que é o meu Facebook. Quando comecei a assisti-lo, achei que era uma sátira feita por algum grupo de direita. Algum Porta dos Fundos do MBL. Mas, pro meu espanto, era a sério.

Homem vestido de mulher: por que está errado? Além da ideia ser machista e desrespeitar as mulheres, ela também é preconceituosa contra as pessoas trans e apenas reforça os estereótipos de gênero. Índio ou índia. Ela pega uma (sic) cultura ampla e diversa e a constrói de forma estereotipada e generalizada. De que adianta usar um cocar para curtir um bloco de Carnaval quando a população indígena é vítima de genocídio?. Não vou brindá-los com a exegese das fantasias de cigano ou muçulmano. O Google tá aí.

Folião se fantasia de 'Vai Malandra', em referência ao clipe de Anitta, em bloco no Rio - Bruna Prado/UOL

Homem vestido de mulher é machista?! Um barbudo de tutu e sutiã não está dizendo que mulheres são risíveis, está dizendo que ele, que não é mulher e é barbudo, torna-se risível de tutu e sutiã. Tampouco está dizendo que um ser nascido anatomicamente homem não pode se assumir e ser tratado como uma mulher. Ele, o barbudo, não é mulher. A graça está no choque entre pessoa e fantasia, assim como um índio não é engraçado, o branquelo de óculos e cocar, é.

Carnaval é a festa da inversão há muitos séculos. No clássico A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, o filósofo russo Mikhail Bakhtin fala das missas do asno, quando se punha um burro no altar das igrejas para rezar a missa. Plebeus se vestiam de nobres, nobres de plebeus. Homens de mulher, mulheres de homem. Longe de reforçar estereótipos, a inversão contida nas fantasias e o humor que ela traz quebram a hierarquia, desconstroem a sacralidade dos lugares estabelecidos, ensinam a nós, como bem colocou o historiador Paul Veyne, que o que é poderia não ser. Exatamente o que uma esquerda esclarecida, crítica e aberta à complexidade deveria fazer.

É desesperador. As eleições estão aí adiante, e a esquerda empurra os eleitores pro colo da direita ao apresentar-se com a fantasia mais grotesca deste Carnaval: ombudsman do Cacique de Ramos.

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