Descrição de chapéu teatro Oscar

Enquanto cinema nos trata como crianças, peça mostra nossas contradições

'Árvores Abatidas', adaptada de livro de Thomas Bernhard, fala da mediocridade da arte

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Dois dias antes da cerimônia do Oscar, assisti à incrível adaptação teatral que o polonês Krystian Lupa fez do romance "Árvores Abatidas", de Thomas Bernhard (somente três apresentações na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo). Nem é preciso dizer que não pode haver dois mundos mais opostos e incompatíveis.

Espetáculo ‘Árvores Abatidas’, do polonês Krystian Lupa, em apresentação na MITsp - Michał Grudziński/Divulgação

A julgar por parte expressiva da produção cinematográfica atual, representada na cerimônia do Oscar —e não só por "A Forma da Água", o grande vencedor deste ano—, estamos sendo tratados como crianças. Em "Árvores Abatidas", o narrador observa os convivas de um "jantar artístico" e os analisa, em silêncio, à distância, sentado numa poltrona, com a acidez de um velho rabugento. Seus comentários demolidores poderiam passar por mero rancor, ressentimento da idade, não fosse a força repetitiva e vital (e, nesse sentido, também infantil) dessa raiva capaz de transformar tudo em estilo e comédia.

Numa entrevista que concedeu à jornalista austríaca Krista Fleischmann, em 1984, por ocasião do lançamento do romance, Bernhard fala da maldade comum aos velhos e às crianças: "Os velhos sem maldade são insuportáveis, assim como as crianças sem maldade. Um menino bem comportado deveria ser estrangulado, e um velho também".

O que o escritor diz não se escreve —"Minha arma é a escrita, não a fala", Bernhard esclarecerá à jornalista em outra ocasião—, mas o abalo provocado pelo sarcasmo e pela ironia de suas respostas alucinantes tem o efeito saudável de pôr as coisas de volta nos eixos e nos deixar rolando de rir.

O cinema, em contrapartida, tem nos tratado como crianças bem comportadas, ao mesmo tempo inofensivas e melindrosas. Basta atentar para a diferença entre "Teorema", o filme "velho e datado" de Pasolini, e o atual sucesso gay "Me Chame pelo Seu Nome" —"uma espécie de 'Teorema' para colorir", segundo Paulo Roberto Pires num texto hilariante, "Pasolini de butique", publicado na revista Época.

O "pensamento positivo" do cinema atual revela a comodidade (e a hipocrisia) tanto de quem tenta nos convencer como de nós mesmos, que nos deixamos convencer. "Árvores Abatidas" está falando da mediocridade e da decadência da arte —por meio da representação de um grupo de artistas e intelectuais austríacos, nos anos 50—, mas também de comodidade e de hipocrisia. Uma coisa está ligada à outra.

É cômodo nos projetarmos bons, bonitos, simpáticos e sorridentes, imunes aos conflitos e às contradições, numa paisagem de sonho. "O mundo sempre prefere o bonito ao feio. Se você prega o feio, as pessoas saem correndo e você acaba com as igrejas vazias", Bernhard ironiza na entrevista seguinte, dois anos depois, quando a jornalista o leva para assistir a uma tourada em Madri, da qual o escritor sai horrorizado.

"É o instinto primitivo do homem, que atravessa todas as classes e todos os seres humanos —matar. (...) A humanidade civilizada faz isso de maneira dissimulada, ela assassina constantemente, não é? (...) O homem é feito para querer ver destruído tudo o que é vital."

O escritor sabe que um grande livro "só existe por suas contradições", e não as economiza em suas respostas: "É precisamente o que é belo nos meus livros: que o belo nunca seja descrito. De maneira que ele nasce por si mesmo. São pavorosos os livros de quem só escreve coisas belas. É assim que eu vejo a literatura".

Ao lugar-comum e à mentira do "jantar artístico" é contraposta a ausência fantasmática de uma atriz que se suicidou. No final da noite, depois de observar com seu olhar cáustico a decrepitude humana e intelectual dos convivas abjetos, gastos pelas convenções, pela vaidade e pela idiotia, o narrador de "Árvores Abatidas" admite que de alguma forma também os ama, assim como ama e odeia Viena e tudo o que vinha execrando desde o início, mas ao qual está inevitavelmente ligado.

A capacidade de confundir o ataque com o humor, mas também de se reconhecer entre os alvos de suas investidas, garante aos livros de Thomas Bernhard a beleza da contradição, que não se procura nem se acha, porque "nasce por si mesma".

Ao se despedir do narrador, a anfitriã, encarnação das convenções, da decadência e da mediocridade artística, pede, por favor, que ele não escreva nada sobre aquela noite. O escritor aquiesce, como uma criança obediente, antes de sair correndo pelas ruas da cidade que ele odeia e ama, para chegar em casa o mais rápido possível e começar o quanto antes a escrever esse livro devastador.

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