Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Confusão entre realidade e representação é marca do tempo atual

Autores como Georges Bataille e Freud provavelmente não teriam lugar nem fala hoje 

mulheres nuas em escada
Cena do filme "Salò, ou os 120 Dias de Sodoma", de Pier Paolo Pasolini - Divulgação

Uma coisa é combater o horror no mundo, outra é não permitir sua representação —como se, inconformados por não conseguirmos nos livrar do horror na vida e na realidade, achássemos possível extingui-lo à força de pensamento positivo ou mágico. Na dificuldade em fazer cumprir a Justiça, nos comprazemos com a sanha moralista que se satisfaz no ataque às representações.

A infantilidade dessa compensação revela muito sobre a nossa impotência e o nosso tempo. Um amigo gay e cineasta me disse outro dia que já não admite certas representações de homossexuais no cinema. Transigir com esse capricho do meu amigo, por mais desagradáveis que sejam essas representações, é o primeiro passo para que também possam banir as representações dos filmes dele, com o mesmo argumento.

A confusão entre realidade e representação, típica da percepção infantil, é uma das marcas deste tempo no qual autores como Georges Bataille e Freud provavelmente não teriam lugar nem fala. Bataille  —para quem o erotismo está ligado à violência, à violação e à transgressão próprias da indeterminação entre vida e morte que define o homem— diz sobre "Os 120 Dias de Sodoma", do marquês de Sade: "Sendo a verdade do furor que no fundo o homem é, e que ele deve conter e silenciar, (...) esse livro representa (...) todo o horror da liberdade".

Sade exprime a contradição que nos define: o mesmo homem que decide o que é o bem e o que é o mal não tem controle sobre o próprio desejo. "Sade se opunha menos ao tolo e ao hipócrita do que ao homem honesto, ao homem normal, ou seja, a todos nós. Menos do que convencer, ele quis desafiar", Bataille escreve em "O Erotismo".

Desse ponto de vista, nosso infantilismo se explica como uma reação natural à complexidade insuportável do mundo. Precisamos de Deus. Afinal, em quem mais podemos confiar se somos pura contradição, se o que nos dá vida também nos mata? Se o problema da verdade fossem apenas as fake news, seria moleza. Mas como lidar com a Justiça que se guia pela prática de dois pesos e duas medidas ou com a polícia que age fora da lei?

As artes, como a maioria das criações humanas (as leis, as religiões etc.), são o que o homem faz com elas. Mudam ao sabor das circunstâncias, acompanham os embates das ideias. Pontificar que a arte pode dizer ou representar isto e não aquilo, como pretende o moralismo ambiente (às vezes com a melhor das intenções, outras nem tanto), é o oposto do que autores como Proust, Sade e Bataille —para citar apenas três escritores cuja integridade literária é inquestionável em sua radicalidade— reivindicaram para si.

Para eles, a verdade da arte é o que não queremos (ou podemos) ver nem ouvir. Nada a ver com identificação ou empatia. Qualquer relativização dessa verdade seria uma traição. Em Proust, o desejo desmascara a hipocrisia; o humano é excesso e contradição, um jogo de opostos em que a virtude só pode ser definida pelo vício.

Analisando o romance do século 19, o crítico americano Leo Bersani mostrou como a construção da individualidade coerente e coesa do herói realista serviu de ilusão apaziguadora para o leitor confrontado com o caos do advento do capitalismo.

Só com as contradições do desejo, implodindo a coerência e a coesão do narrador proustiano (esse sujeito que é ao mesmo tempo todo mundo e ninguém), foi que o realismo afinal chegou à verdade que anunciava.

O paradoxo (e a resposta a uma percepção de mundo que se pretende regida pela empatia) é que, tanto no caso de Bataille como no de Sade ou Proust, a arte de verdade é o contrário daquilo com que queremos nos identificar, e muitas vezes o contrário daquilo que acreditamos (ou aprendemos a acreditar) ser a verdade: ela é reflexiva.

Em contraposição à relação infantil e narcisista de quem só quer ver o que lhe corresponde e se ofende pelo que o contraria, Proust propõe o desejo como medida do real. O desejo que nos escapa e a consciência que temos dele permitem uma percepção mais adulta e mais complexa da verdade.

Não é estranho que seja justamente o horror à consciência do desejo, encarnada na luta pela diversidade sexual e pelos direitos individuais, aquilo que sela o pacto conservador entre evangélicos, católicos e a direita populista.

Esse pacto depende da reprodução da infantilização para a qual o desejo é o demônio (porque significa a perda da inocência ou de uma ilusão) e para a qual a defesa da empatia e da identificação como critérios absolutos das artes contribui inadvertidamente.

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