Em 'Molière', a glória do teatro
Comédia e tragédia se fundem em peça da mexicana Sabine Berman no Sesi
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Por que, afinal de contas, a tragédia é mais "nobre" e "artística" do que a comédia?
Imagino que, talvez, a razão seja a de que uma piada não sobrevive a ser contada muitas vezes. Na piada, o desfecho é tudo: uma vez conhecido, o prazer do ouvinte diminui.
Numa tragédia, o conflito pode ter uma resolução qualquer —o herói morre, fica louco etc.— e ainda assim se prolonga eternamente.
Pegue um personagem dividido entre a fidelidade à pátria e o amor à filha de um rei inimigo. Ou entre a convicção política e a lealdade à família. O confronto desses dois princípios se apresenta como insolúvel e se prolonga na mente do espectador, qualquer que seja o final da peça.
De certo modo, ocorre o oposto do que afirma um texto de Nietzsche, para quem o prazer era "mais profundo do que a dor". Para o filósofo, isso é porque a dor sempre diz: "passa!", enquanto o prazer deseja "eternidade, profunda eternidade".
Bastante bonito, ainda mais quando musicado por Gustav Mahler (1860-1911), no final de sua Segunda Sinfonia. Mas imperfeito como raciocínio. Quem diz "passa" não é a dor, é a pessoa que sofre. A dor, em si, prevalece —e a morte, afinal, sempre diz a última palavra.
A tragédia teria, assim, uma "infinitude" que a comédia não pode ter.
O problema, nos dias de hoje, é que a tragédia é impopular; quem quiser sucesso, no teatro paulistano pelo menos, fará bem em montar uma comédia.
A peça "Molière", da mexicana Sabina Berman (em cartaz no Teatro do Sesi, até 29 de julho), coloca em cena essa discussão (e muitas outras) —com uma inteligência e uma graça extraordinárias.
Estamos na França, nos tempos de Luís 14, quando o comediógrafo Molière (1622-1673) obtém sucesso atrás de sucesso, tanto junto ao público em geral quanto na corte.
Dezessete anos mais moço, Jean Racine (1639-1699) chega da província e precisa de ajuda política e artística para encenar suas tragédias.
A rivalidade entre os dois grandes autores ganha interesse e dimensões ainda maiores, a meu ver, do que no excelente "Amadeus" de Peter Shaffer, que depois virou um filme de Milos Forman.
Ali, o gênio de Mozart se deparava com a inveja de Salieri, compositor de recursos mais limitados. Na peça de Sabina Berman, Racine não é "pior" do que Molière, evidentemente, e o confronto de princípios (a tragédia e a comédia) ultrapassa os dois personagens.
Confronto teoricamente insolúvel —o que nos levaria, quem sabe, a uma tentativa de encená-lo tragicamente.
É por isso que, no começo da peça, quem toma a palavra é Racine. Apresenta-se ao público e explica o mecanismo dramático que irá conduzi-la: dois personagens principais, outros secundários que tomam partido de um ou de outro ao longo da história, e assim por diante...
Contra o razoável, didático e claro discurso de Racine (vivido por Élcio Seixas), eis que irrompe Matheus Nachtergaele, no papel de um Molière carnavalesco, tropicalista e dionisíaco.
O palco se enche de adereços, zabumbas, palhaçadas.
Matheus Nachtergaele é irresistível na sua energia macunaímica —e Racine poderia ser apenas o "vilão" da história, intrigante e pomposo. Mas a extraordinária atuação de Élcio Seixas criou um Racine humaníssimo, frágil, ao mesmo tempo cínico e puro, triunfante e delicado.
Somam-se personagens secundários capazes de trazer alegria e verdade a cada linha do texto, a cada instante do espetáculo.
O embate entre Racine e Molière tem algo do encontro entre a cigarra e a formiga: como não imaginar Sabine Berman se congratulando pela própria ideia de inserir La Fontaine (o encantador Rafael Camargo) como participante benévolo da história? Georgette Fadel é a graça de saltimbanco, de cinema mudo, no papel do irmão de Racine.
Quanto a Luís 14 (Nilton Bicudo), eis um monarca ao mesmo tempo poderoso e manipulado, simpaticíssimo e confuso, sob a pressão do teimoso arcebispo Péréfixe (Renato Borghi).
Este diverte a plateia, morrendo e "ressuscitando" várias vezes em cena: mais uma vez, é o princípio da imortalidade trágica fundindo-se ao princípio da repetição mecânica —que está por trás da comédia.
Tem-se assim um resultado genial: comédia e tragédia se unem e se separam na própria peça. O comediógrafo Molière conhece a dor, a doença, a morte. O trágico Racine experimenta um final feliz: sucesso, fama, favores do rei.
Um e outro se iluminam nos refletores do palco, entusiasmam o público e desaparecem depois dos aplausos do teatro lotado. O teatro conhece, nessa montagem, um triunfo como poucas vezes pude ver.