Dependência química não é doença

Ministro Osmar Terra tentou votar nova política de drogas sem debate público

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São Paulo

Não vendo avançar no Congresso seu projeto de lei de 2013 que engata marcha a ré na política de drogas, o ministro do Desenvolvimento Social Osmar Terra (MDB-RS) apelou. Levou ao principal órgão do Executivo para o assunto uma proposta de resolução de teor equivalente, baseada na noção de enfrentamento.

Leia-se: contra a legalização de substâncias hoje ilícitas, foco em abstinência e internação para tratamento de dependentes químicos. Tudo que não deu certo ao longo do século 20 e o contrário do que vem tendo sucesso, no 21, em países como Portugal, Uruguai e EUA (9 Estados com maconha recreativa legalizada).

Jovem fuma um cigarro de maconha durante uma marcha pela legalização da droga - Leonardo Benassatto-5.jun.17/FramePhoto/Folhapress

A apresentação da proposta entrou de última hora na pauta do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), ligado ao Ministério da Justiça. Só não foi votada na quinta-feira (1°) porque houve pedido de vista pelo representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Muito a propósito, aliás. A pesquisa científica está do lado de quem favorece políticas mais brandas para a questão, no que se convencionou chamar de redução de danos.

Noves fora os arroubos mais delirantes dos talibãs da antipsiquiatria e da luta antimanicomial, essa é a melhor conduta para quem quer diminuir o sofrimento dos dependentes e suas famílias, e não avançar a agenda do Centrão, da bancada BBB (boi, bala e Bíblia) ou da indústria carola das comunidades terapêuticas.

A neurociência mais criativa caminha na direção contrária da medicalização, ou seja, do modelo que encara a dependência química como doença que se vence apenas com internação, tratamento medicamentoso —drogas substitutas, para mitigar sintomas da abstinência ou sedar o "viciado"— e terapia adaptativa.

Há um livro corajoso a respeito, "The  Biology  of  Desire –  Why  Addiction  Is  Not a Disease" (A Biologia do Desejo – Por Que a Dependência Química Não É uma Doença), de Marc Lewis. Foi publicado em 2015 pela editora Public  Affairs/Perseus  Books.

Lewis, neurocientista e professor de psicologia do desenvolvimento na Holanda, é também um dependente químico que se livrou da droga. Ele tece seus argumentos a partir das histórias dolorosas dos dependentes Natalie (heroína), Brian (metanfetamina), Donna (analgésicos opioides), Johnny (álcool) e Alice (bulimia).

São narrativas de final não infeliz: todos superam a dependência, alguns com internação, outros com terapia, nenhum sem reencontrar um propósito de vida para o qual canalizar seu desejo e distanciá-lo da satisfação fugaz buscada na droga de maneira compulsiva.

A tese central de Lewis, impossível de reproduzir aqui com a minúcia anatômica e bioquímica do livro, aponta que a dependência não decorre de um mau funcionamento do cérebro, de uma enfermidade. Ao contrário, ela resultaria da operação ultraeficiente de módulos mentais com que a evolução nos dotou para seguir buscando satisfação de necessidades.

Paro por aqui, na recomendação de leitura, para concluir: houve um tempo em que os conservadores buscavam apoio em fatos e evidências, em especial da neurociência, para derrubar crenças propagadas por progressistas. Agora que seu campo foi tomado pela truculência argumentativa, sobram motivos táticos e racionais para a esquerda arrebatar-lhes as armas abandonadas.

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