Entender e amar a arte que não sabemos

Uma síntese do pensamento musical de Adorno em Quase uma Fantasia

Conteúdo restrito a assinantes e cadastrados Você atingiu o limite de
por mês.

Tenha acesso ilimitado: Assine ou Já é assinante? Faça login

Filho de cantora lírica, e morando com uma tia pianista, Theodor Adorno viveu a música desde menino. Passou pelo conservatório, estudou composição, escreveu centenas de artigos de jornal e ensaios eruditos a seu respeito.

Afetivo e efetivo, o seu envolvimento com a música não era periférico em relação à filosofia e à sociologia. Dos 20 volumes das suas "Obras Reunidas", 8 são sobre música. A crítica musical não ilustra o seu pensamento; é expressão dele.

"Quasi una Fantasia" (editora Unesp, 450 págs.) está para a música assim como "Minima Moralia" para a sociologia e "Dialética do Esclarecimento" para a filosofia. O lançamento só agora, 55 anos depois da publicação original, é indenizado pela edição caprichada de Eduardo Socha.

O título "Quase uma Fantasia", que alude a duas sonatas de Beethoven, condensa uma ambição contraditória. "Sonata" é uma figura musical ortodoxa, enquanto a "fantasia" apela à liberdade da imaginação. Não podem ser combinadas, e é isso que Adorno busca.

Ele mobiliza um conhecimento técnico minucioso para pensar o que sua fantasia intui ou cria. Embora o objetivo e o subjetivo estejam soldados, a tensão entre eles é mantida. Como a crítica se enraíza na prática, na história e na imaginação, ela é densa.

Exemplos: "O afeto que emerge da música de Schubert é a humildade, não a resignação". "As luzes que irradiam de tuas feridas: o verso de Stephan George serve como uma divisa para Mahler". "A tristeza é o fundamento de toda música direcionada à interioridade".

A crítica é afiada: "O gesto básico da 'Ave Maria', de Gounod, é a súplica do autoabandono sacrossanto. A alma entrega-se nas mãos do Todo-Poderoso com a saia levantada". "Com todo respeito a Handel, já passou da hora de desfazer a associação ridícula entre seu nome e o de Bach."

É estética: "O kitsch deve sua existência ao fato de o sujeito pressentir, por um instante, que desperdiçou sua vida".

A crítica alcança o cerne humano: "É urgente saber se a distinção psicanalítica entre consciente e inconsciente é adequada. Pois ela pressupõe que o indivíduo possuiria densidade e autonomia, o que simplesmente deixou de existir: para recalcar, é necessário pelo menos ser um Eu".

Vem então "Fantasia sopra Carmen", um ensaio prodigioso. Ele diz que a ópera de Bizet é oposta ao "mundo wagneriano do incesto", no qual "o amor ama apenas o que lhe é semelhante", sacrificando "a natureza à máquina infernal da sociedade". Em Wagner, "tudo flui e nada muda". Na "Carmen", "o destino projeta sua sombra sobre o palco".

Adorno é sarcástico ao flagrar a audiência: "Somente o ato cego de aplaudir promove o encontro entre música e ouvinte". "A plateia é o lugar, a casa da burguesia no teatro". "Nos camarotes moram os fantasmas". "No foyer, os espectadores são os intérpretes, que se apresentam a um público imaginário".

Na segunda parte, "Rememorações", quatro compositores são reavaliados. O destaque é o ataque de "Stravinsky - uma imagem dialética". Ele é tão cortante que Schoenberg, que desgostava de Stravinsky, diz numa carta achar "repulsivo" o modo como Adorno se referia ao russo.

Não obstante, a crítica instrui. Ela sustenta que as músicas dodecafônicas e seriais perdiam o gume: "A vanguarda dificilmente é compatível com o triunfo dos vencedores". Stravinsky seria "vítima de um processo de recalcamento, dissimulado como elogio".

Adorno foi recriminado por chamar Stravinsky de esquizofrênico. Ele esclarece: disse, isso sim, que a sua música "derivava da neurose obsessiva e da esquizofrenia como princípio estilístico". Sublinha a "nobreza, coragem e humanidade" do músico, aprofunda a crítica à sua música e arremata: "Só quem não compreende a obra ataca a pessoa".

A última parte de "Quase uma Fantasia" é de leitura difícil. Os conectivos somem, as antíteses se acumulam e as abstrações espelhadas fazem com se perca o fio da meada, sobretudo o diletante. Não é só uma questão de estilo: Adorno tateia.

Ao chegar aos 60 anos, diz, lhe era difícil entender a música atual. Gosta de Stockhausen e Boulez, mas não se eletriza. Diz que um concerto de Cage lhe provocou "forte impacto, sem que eu conseguisse definir que impacto era esse".

Recusando refúgio nas certezas da vanguarda da juventude, Adorno segue adiante. Escuta, ensaia, incentiva o novo. Anticonformista, a última frase do livro é uma fantasia e um programa: "Toda utopia na arte hoje é fazer coisas que não sabemos o que são".

Relacionadas