Descriminalização do aborto

Criminalizar não tem nenhuma capacidade de reduzir a sua incidência

Manifesto da frente Nacional Pela Legalização do Aborto na Praça da Sé, em São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

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O plenário do Supremo Tribunal Federal deverá enfrentar nos próximos meses o tema do aborto. A interrupção voluntária da gravidez envolve questões complexas de natureza moral, jurídica e de saúde pública. Todas imbricadas. Estima-se que mais de 55 milhões de abortos sejam praticados, todos os anos, ao redor do mundo. No Brasil, as pesquisas indicam a ocorrência de mais de 500 mil abortos por ano. Isso dá uma dimensão do problema. 

Se o objetivo é reduzir o número de abortos, a criminalização não tem se demonstrado uma solução eficiente. A incidência de aborto é bem maior em países que proíbem o procedimento (37 por grupo de mil mulheres) do que naqueles países que autorizam a sua prática (17 por grupo de mil mulheres).

Dados apresentados pelo instituto Guttrmacher apontam que de 1990 a 2014 houve um declínio de cerca de 40% no número de abortos em países desenvolvidos, que sistematicamente descriminalizaram essa prática nas últimas décadas. Já em países em desenvolvimento, onde a criminalização foi, com raras exceções, mantida, os números permaneceram estáveis. 

Se esses dados não nos permitem inferir que a descriminalização reduz o número de abortos, nos autorizam afirmar, com segurança, que a criminalização do aborto não tem nenhuma capacidade de reduzir a sua incidência. O único efeito prático da criminalização é ampliar o número de abortos realizados na clandestinidade, com graves consequências físicas e psicológicas para as mulheres. 

Dados do Ministério da Saúde apontam que 123.312 mulheres deram entrada em hospitais brasileiros em função de complicações derivadas de abortos em 2016. Essa é a realidade que deveria ser levada a sério por todos aqueles que, por razões religiosas ou convicções morais, são contrários ao aborto. 

Da perspectiva jurídica é fundamental destacar que a Constituição de 1988 não protege o direito à vida desde o momento da concepção. Esse direito, como ficou definido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da pesquisa com células tronco, só pode ser reivindicado a partir do início da vida biográfica. Do nascimento com vida.

Isso não significa que o Estado não tenha um interesse legítimo em proteger o feto. Ele pode fazê-lo. Mas isso não pode ser feito a partir de uma política que, além de absolutamente ineficaz, impõe graves limitações aos direitos das mulheres.

A criminalização do abordo ofende de uma só vez os direitos à dignidade, à liberdade, à privacidade e à intimidade das mulheres, quando transfere o controle sobre o seu corpo para as mãos do Estado.

Além do que, ofende o direito à igualdade, na medida em que a criminalização tem um impacto perversamente desproporcional sobre mulheres pobres, que não podem recorrer a clínicas protegidas e mesmo deixar o país para praticar o aborto.

Por todas essas razões, o STF deveria seguir o caminho aberto por diversos tribunais ao redor do mundo, especialmente na Europa, e declarar a criminalização da prática de aborto, ao menos nas primeiras 12 semanas de gestação, inconstitucional. Ao fazê-lo, não estará invadindo competência do Congresso, mas simplesmente defendendo a Constituição de uma legislação inconstitucional, ultrapassada e ineficaz.

Se o objetivo é reduzir o número de abortos, o Estado brasileiro deveria deixar de perseguir as mulheres, investir seriamente em educar nossos jovens e, sobretudo, disponibilizar meios contraceptivos.

Erramos: o texto foi alterado

A coluna afirmou, incorretamente, que cerca de 1.500 mulheres morreram em 2016 em decorrência de complicações de abortos. O número se refere a óbitos maternos relacionados à gestação e ao parto

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