Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli

Bebês não precisam de chantili

Desde o parto, cabe unicamente à mulher a decisão de amamentar ou não

Recém-nascido com sua mãe
Bebê recém-nascido com sua mãe - Michael Kempf/Fotolia/Folhapress

Põe o dedo aqui quem penou para conseguir ou simplesmente teve que desistir de amamentar, mesmo desejando muito fazê-lo. Quero deixar claro que considero aleitar um gesto de decisão exclusiva da mulher, sob quaisquer circunstâncias.

Nenhuma argumentação sobre a importância da amamentação, seja para o organismo, seja para o vínculo como bebê ou, ainda, para economia mundial justificaria sua execução baseada em coerção ou constrangimento. Desde o momento zero da sala de parto, cabe à mulher e unicamente a ela a decisão de amamentar ou não. Dito isso, vamos ao referido descalabro.

Digamos que você tenha acesso aos melhores hospitais e, portanto, acesso às melhores equipes de saúde do país —o que não é pouca coisa. Quem já utilizou esses serviços no exterior sabe que para que toda população de um país tenha acesso à saúde decente e gratuita, fica impossível os excessos de qualidade.

A hotelaria deixa de ser cinco estrelas, os exames deixam de ser pedidos sob qualquer pretexto leviano e as consultas se reduzem à frequência e duração necessárias para que todos sejam contemplados. Enfim, o “chantili”, usado na disputa pelo mercado, desaparece.

No caso da amamentação, parece lógico que ao ter um bebê, tendo acesso a um excelente atendimento e desejando amamentar, você consiga fazê-lo sem problemas. 

Se levarmos em consideração que é prática corriqueira no Brasil a gestante seguir com o mesmo médico todo o pré-natal —fato também ligado ao efeito “chantili” do excesso para uns e falta para outros — teremos o mesmo profissional com inúmeras oportunidades de abordar a amamentação nas consultas de rotina. Se não ocorreu, você ainda pode ter a esperança de que, quando seu bebê nascer, e com toda a equipe de enfermagem e pediatria ao seu redor, você terá sua chance de descobrir como se faz.

É aí que começa o lado insólito da história. Amamentar envolve dicas simples, mas imprescindíveis, cuja falta tem posto mães e bebês em sérios apuros físicos e psíquicos, totalmente evitáveis. Pior, essas dicas precisam ser orientadas desde o primeiro momento em que o bebê acessa o seio da mulher e mesmo antes.

São dicas que vinham sendo passadas de uma geração a outra, entre mulheres, e que com a hospitalização do parto era de se esperar que fossem transmitidas pelos profissionais de saúde. Dessas dicas decorrerá se o ato de amamentar vai ferir ou não a mulher. Fato que, numa atividade repetida dezenas de vezes ao longo do dia e da noite durante meses, pode ser a diferença entre uma amamentação prazerosa ou um circo de horrores fadado ao fracasso.

Isso se chama “pega correta” e tem sido negligenciado de forma que soa acintosa. Como se a bomba, só explodindo na volta para casa, não dissesse respeito aos profissionais de saúde ligados ao parto, mas tampouco aos pediatras!

Se você não esvaziar totalmente um seio, por exemplo, antes de oferecer o outro, seu bebê estará hidratado, mas sem receber a gordura necessária para engordar. A partir daí, talvez você ouça a maior barbaridade que uma mulher que carregou, oxigenou, alimentou, aqueceu e gerou um bebê em útero pode ouvir: “Seu leite é fraco”.

A coerção moral de dar o seio, a amamentação dolorosa por falta de orientação e o mito do leite fraco são apenas alguns dos descalabros que têm feito do aleitamento um problema de saúde pública.

O exemplo das mulheres que têm acesso aos melhores serviços de saúde revela como a burocracia mercadológica pode esconder a negligência. Bebês não precisam de chantili, mas de leite. Informe-se. Mulheres precisam de conhecimento e apoio se quiserem amamentar. E se não quiserem também.

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