Invasão da febre amarela em SP abala rotina de condomínios verdes
Conjuntos no interior e na Grande SP registram casos em humanos e macacos
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Durou nove meses o sonho de Samir Saba, 52, de viver perto da natureza. Em março de 2016, ele trocou a Vila Olímpia, na zona oeste de São Paulo, por uma chácara em um condomínio de Ribeirão Preto (a 313 km da capital). Em um domingo de dezembro, de repente começou a passar mal. Uma semana depois, morreu de febre amarela.
Seu caso ilustra um traço característico do atual avanço da doença: a presença do vírus em condomínios verdes de cidades da Grande São Paulo e do interior do Estado.
Diferentemente dos conjuntos da capital, esses residenciais têm, muitas vezes, terrenos de grande extensão com matas fechadas próximas ou até no lado de dentro das cercas. A situação é evidente principalmente na Serra da Cantareira, em cidades como Caieiras e Mairiporã.
Os dois municípios concentram mais da metade dos 163 casos de febre amarela confirmados no Estado desde o início do ano passado. Além de vítimas humanas, o vírus deixou grupos inteiros de animais mortos, caídos nos quintais de pelo menos uma dezena de condomínios. "Parecia filme de zumbi", lembra a médica Adriana Homem, 50, moradora de um deles.
A proximidade com essas mortes mudou a rotina de moradores. Residente em uma chácara em um complexo residencial de Caieiras, a arquiteta paulistana Míriam Novaes, 58, adquiriu novos hábitos desde a morte do irmão de sua vizinha. Morador da Vila Guilherme, na zona norte de São Paulo, ele havia ido passar o Natal com a família e, sem vacina, acabou infectado.
Como acontece sempre que um caso de febre amarela é notificado, logo após o diagnóstico teve início por ali uma ação imediata de bloqueio do vírus. "Vieram com furgão, passaram de casa em casa e entraram nos quintais para procurar focos de mosquito", lembra Míriam.
O objetivo da medida, que faz parte de protocolos de vigilância, é evitar novos casos e, principalmente, afastar a possibilidade de reintrodução da febre amarela urbana no Brasil. Isso porque, desde 1942, o país só tem a circulação silvestre da doença, ou seja, de vírus transmitido por mosquitos que vivem apenas em áreas de mata --caso de muitos condomínios verdes.
Para evitar a reurbanização da doença, é preciso garantir que nenhum mosquito das espécies Aedes aegypti ou A.albopictus, que circulam em cidades, venham a carregar o vírus. Por isso, focos de água parada são eliminados, e insetos são coletados para análise laboratorial. Mairiporã está fazendo ainda um levantamento censitário para saber quem está imunizado, explica a secretária municipal de Saúde Grazielle Bertolini.
Medidas de bloqueio também foram tomadas em Ribeirão após o caso de Samir. Segundo Luiza Passos, diretora de Vigilância em Saúde, mais de 3.000 imóveis em condomínios urbanos próximos a matas foram vistoriados.
Lupa e vacina
Nos residenciais da Serra da Cantareira, todo mundo se vacinou depois das primeiras mortes, conta Miriam. "Até quem não devia." Além da imunização, ela passou a adotar outros cuidados. "Cada pernilongo que eu mato eu coloco num paninho branco e olho com lupa para ver se é o da febre amarela", diz.
Ela evita visitantes de São Paulo. "Eu falo: 'Não venha'. Muita gente acha que, se ficar pouco tempo, não vai pegar a doença. Mas não tem essa." De fato, quem vai à região precisa ter tomado a vacina há pelo menos dez dias.
Além de pessoas de fora da cidade, outras vítimas nos condomínios da região foram profissionais como jardineiros, caseiros e pedreiros que, não imunizados, contraíram o vírus durante o expediente em áreas de mata.
"Todo mundo que presta serviço conhece alguém que morreu", diz a bióloga Carmen Ferrari, 63, também moradora de condomínio. A paisagista Isis Moretti, 35, que atua na região, conhecia dois.
O homem e os bichos
Para Mauricio Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, não surpreende a aparição de casos em residenciais de áreas de mata próximos à capital paulista. "Os mosquitos sempre estiveram lá. Nós é que nos aproximamos cada vez mais." Outra mudança é que, agora, os insetos carregam o vírus, o que antes não acontecia na Grande São Paulo.
Os macacos sentiram o efeito dessa nova realidade. Desde julho de 2016, foram registradas 723 mortes de grupos deles por febre amarela, 102 só em Mairiporã. Para a médica Adriana Homem, o número real é ainda maior. Só no seu terreno, dez apareceram mortos. "Eles caíam das árvores agonizando", conta.
Outros foram envenenados por pura ignorância: quem transmite a doença é o mosquito, não os macacos. A morte deles é, na realidade, um alerta para a circulação do vírus, o que permite às cidades vacinar a população.
Diante da situação, Adriana criou, com um grupo de moradores, a organização Um Sonho de Bugio. Além de ações de conscientização, eles promovem tratamento de animais e medidas preventivas. Entre elas, está a costura de telas para proteger do mosquito os bichos abrigados em áreas de potencial risco.
Um dos lugares que recebeu a ajuda é o Zoológico de São Paulo, fechado desde que um bugio de vida livre foi diagnosticado com o vírus há duas semanas.
Além de macacos, moradores também relatam que têm encontrado muitos outros animais mortos, como aves, iraras e quatis, por motivos que ainda não estão claros --o desequilíbrio no ecossistema é uma possibilidade.
"Só tinha sobrado o Oscar, mas eu não tenho visto ele mais", relata a arquiteta Míriam. "O Oscar era um sapo que ficava aqui", explica. "Ele tinha família."
Seja qual for o motivo da ausência o fato é que os moradores da região ainda sentirão falta dos bichos por algum tempo. "Todos os dias eu acordava e ficava prestando atenção nos sons que eles faziam. Ainda não me acostumei à ausência deles", afirma a arquiteta Carmen.
Erramos: o texto foi alterado
Diferentemente do que informava a reportagem, Grazielle Bertolini é secretária de Saúde de Mairiporã, e não de Caieiras