Filme 'A Morte de Stálin' faz polícia ameaçar fechar cinema em Moscou

Longa mostra cúpula soviética amoral, gananciosa e patética e gera acusações de complô ocidental

Sobre um tapete, Stálin (Adrian McLoughlin) é observado por Malenkov (Jeffrey Tambor), Krushchov (Steve Buscemi) e Beria (Simon Russel Beale) - Divulgação

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Igor Gielow
Moscou

No meio da tarde de 26 de janeiro passado, Olga Ivanova foi chamada pelas colegas da bilheteria do cinema Pioner, em Moscou.

Seis policiais estavam lá e avisaram a administradora: ou suspendia as sessões do filme que exibia naquele momento ou o Pioner seria fechado.

"Parecia as histórias que a gente ouvia em casa, do tempo da União Soviética", diz a jovem, nascida em 1992, um ano após o fim do império comunista. O filme em questão era "A Morte de Stálin", em cartaz no Brasil.

A comédia de humor negro escrachado retrata a disputa encarniçada por poder que sucedeu o derrame e a morte do mais longevo ditador soviético, Josef Stálin, em 1953.

Liderado por um genial Steve Buscemi no papel de Nikita Krushchov, o sucessor de Stálin, o elenco aplica mordacidade ao pintar a cúpula soviética como um bando de seres amorais, gananciosos e patéticos.

Três dias antes de os policiais chegarem ao Pioner, "A Morte de Stálin" tivera a licença de exibição revogada pelo Ministério da Cultura do governo de Vladimir Putin.

A alegação foi de que a obra tinha conteúdo historicamente duvidoso, além de vilipendiar símbolos nacionais —o hino da Rússia tem a mesma melodia de seu antecessor comunista e figura no filme.

Até um dado da realidade no filme, Stálin encharcado de urina após sofrer o derrame, foi acusado por deputados nacionalistas como parte de um complô ocidental contra a estabilidade russa.

O tema é constante na política local, e as relações do Kremlin com o Ocidente estão nos piores níveis desde a anexação da Crimeia, em 2014.

Não que não haja equívocos factuais no filme, como apresentar o então ex-chanceler Viacheslav Molotov como ocupante do cargo ou adiantar em alguns meses a prisão do monstruoso chefe da polícia política, Lavrenti Beria.

São falhas incômodas, mas irrelevantes para o que se quer descrever em hipérbole. É aí que reside a polêmica.

A petição contra o filme do escocês Armando Iannucci partiu de um grupo que incluiu Era e Maria Jukova, filhas do marechal Georgi Jukov, que é reduzido a um bufão com pendor por medalhas.

Em Moscou, Jukov está representado na principal estátua na entrada da praça Vermelha: ele foi o homem que liderou a vitória sobre os nazistas na Segunda Guerra Mundial, quando seu país perdeu talvez 20 milhões de pessoas.

No filme, aliás, ele é apresentado como comandante do Exército Vermelho, posição que já não ocupava em 1953.

Isso ajuda a explicar a reação que o filme causou não só na Rússia —foi banido nos ex-soviéticos Belarus, Cazaquistão e Quirguistão. Mas não só.

"Orgulho nacional ainda é um tema caro por aqui, embora o filme pareça mais preocupado em fazer paralelos com as brigas do Kremlin hoje, e é aí que pode estar o problema", sugere o cientista político Konstantin Frolov.

Putin sempre fez uso político da mitologia associada à Grande Guerra Patriótica —a designação russa para o conflito mundial já diz muito.

Ele o faz sem glorificar Stálin, sem muito sucesso. Pesquisa do instituto Levada em junho de 2017 mostrou que o ditador é a pessoa mais notável da história para 36% dos russos. Paradoxalmente, outros levantamentos não mostram saudosismo do regime comunista.

Frolov foi um dos poucos que conseguiu ver o filme. O Pioner, único cinema russo em que a obra estreou, fez duas sessões em 25 de janeiro e acabou interrompendo a exibição a partir da terceira, no dia seguinte.

Apesar de dizer que não estava ciente da censura, algo improvável, o cinema acabou multado em 80 mil rublos (cerca de R$ 4.700).

Um mês depois, exibiu em um festival o drama francês "O Divã de Stálin" (2016), também sem licença apesar de ter como estrela um amigão de Putin, o agora franco-russo Gérard Depardieu. O cinema recebeu nova multa.

Esse tipo de polêmica não é inédito. Em 2017, o premiado "Matilda", de Alexei Uchitel, foi alvo de campanha contrária patrocinada por expoentes da Igreja Ortodoxa Russa. O filme mostra o último czar, Nicolau 2º, com sua amante. Só que ele é santo da igreja, canonizado em 2000 pelo martírio nas mãos dos bolcheviques em 1918.

Mas "Matilda" não foi censurado. Olga, que só revela o patronímico e não o sobrenome, lembra que quando o Pioner o exibiu, houve ameaças de incêndio anônimas.

Propriedade do oligarca Aleksandr Mamut, o cinema sedia o Festival Internacional de Cinema de Moscou e tem duas salas modernas, com 84 lugares cada, café e livraria. É um típico cineclube de arte, e se orgulha de só passar filmes estrangeiros com legendas —a praxe russa é dublá-los.

Nesta semana, contudo, o cardápio de dez filmes incluía um ponto fora da curva: "Jurassic World 2", arrasa-quarteirões estrelado por dinossauros bem mais virtuais do que os mostrados em "A Morte de Stálin".


Quem é quem no filme

Nikita Krushchov
Steve Buscemi

Nikita Krushchov (1884-1971), papel de Steve Buscemi, sucedeu Stálin no comando da URSS após remover a "troika" que assumiu o governo quando o ditador morreu. Promoveu a desestalinização do país e acabou derrubado em 1964

Lavrenti Beria
Simon Russel Beale

Lavrenti Beria (1899-1953), interpretado por Simon Russel Beale, é chefe do aparato de repressão e da polícia secreta sob Stálin, integrou a "troika" com Malenkov e Molotov, mas foi preso e executado por ordem de Krushchov

Georgi Malenkov
Jeffrey Tambor -

Georgi Malenkov (1901-88), papel de Jeffrey Tambor, é adjunto de Stálin que assumiu o cargo de premiê, mas teve os poderes retirados por Krushchov. Caiu em 1955 e tentou dar um golpe em 1957, que fracassou e o tirou da vida pública

Georgi Jukov
Jason Isaacs

Georgi Jukov (1896-1974), feito pelo ator Jason Isaacs, é marechal, o mais importante comandante militar soviético na Segunda Guerra, liderou a campanha que derrotou os nazistas. Auxiliou Krushchov a tomar o poder em 1953

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