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Neurologista António Damásio busca origens da cultura e dos sentimentos na biologia

'A Estranha Ordem das Coisas' é um tratado sobre a homeostase, que regula funções dos organismos

O português António Damásio em São Paulo, durante o Fronteiras do Pensamento 2013 - Karime Xavier - 26.jun.13/ Folhapress

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Hélio Schwartsman

A Estranha Ordem das Coisas

Avaliação:
  • Preço: R$ 64,90 (344 págs.)
  • Autor: António Damásio, com tradução de Laura Teixeira Motta
  • Editora: Companhia das Letras

A vida eterna é possível? Robôs dominarão o mundo? As pessoas conseguirão um dia superar suas diferenças e se entender? Essas são algumas das perguntas a que o neurologista português António Damásio tenta responder na parte final de “A Estranha Ordem das Coisas”, seu mais recente livro, que acaba de ganhar edição brasileira. Para fazê-lo, porém, ele precisa recuar um pouco e mergulhar na biologia que nos constitui.

“A Estranha Ordem das Coisas” retoma e de certa forma radicaliza a ideia que celebrizou Damásio de que, ao contrário do que dizia Descartes, razão e emoção são indissociáveis.

Processos cognitivos e a tomada de decisões —ou seja, a própria mente— só são possíveis porque guiados pelas emoções que são, por sua vez, estão visceralmente ligadas ao corpo. Nesta obra, porém, o foco de Damásio está menos na neurociência e mais na biologia. O autor procura construir um argumento mais universal, que engloba a maior parte dos seres vivos e não apenas o homem.

O ponto de partida é a homeostase, o sistema de regulação das funções de um organismo. Classicamente, a homeostase era vista como um conjunto de “termostatos” que visava a manter em equilíbrio parâmetros vitais como temperatura, níveis de glicose, íons, balanço de fluidos etc. 

Algumas dessas funções são reguladas por sistemas neuroendócrinos sem nem passar perto do radar da consciência; outras, entretanto, exigem ações conscientes. Um exemplo: se minha glicemia cai, sinto fome e me ponho a procurar comida. É essa ideia que Damásio leva às últimas consequências. 

Os sentimentos, que são basicamente a dor e o sofrimento, pelo polo negativo, e o prazer e o bem-estar, pelo positivo, tornam-se os mensageiros mentais da homeostase. 

São eles que nos motivam a agir, monitoram nossos estados internos e negociam prioridades. A meta primária é satisfazer às necessidades do corpo (ou seja, a homeostase), mas os desdobramentos vão bem além disso.

“A Estranha Ordem das Coisas” é essencialmente um tratado sobre como a homeostase está na base de tudo, incluindo a mente, a consciência e a própria cultura. Linguagem, religião, moralidade, ciência e artes fazem parte do pacote.

Humanos somos só um pedaço dessa história. A homeostase é um princípio universal da vida, aplicando-se não apenas a animais como também a membros de outros reinos.

Há uma passagem em que Damásio mostra como bactérias são capazes de aderir a práticas que classificaríamos como culturais e até mesmo morais. As diferenças entre homens e outros seres vivos, inclusive no que diz respeito à consciência e à cultura, são de grau e não de natureza.

É com esse arcabouço teórico que Damásio tenta responder às perguntas do início deste artigo. Vamos, então, a um esboço das respostas. 

A imortalidade seria a homeostase levada à perfeição. Em tese, não há nada na biologia que impeça que cheguemos a esse estado. 

A ideia dos chamados trans-humanistas de obter a vida eterna fazendo o download da consciência num computador tem, para Damásio, problemas. Se a mente é o resultado da interação entre corpo e cérebro, fica difícil até imaginar o que seria uma consciência sem um corpo que a municia com os sentimentos.

Um argumento semelhante afasta um pouco o risco de nos vermos escravizados ou destruídos por robôs.

Do jeito que são construídos hoje, eles têm muita cognição e nenhum afeto. Ou seja, não conseguem desenvolver os sentimentos que talvez os motivassem a agir contra nós.
Quanto à possibilidade de superarmos nossas diferenças e nos entendermos, isso já é mais complicado. A homeostase diz respeito à vida do organismo individual. 

É essa a unidade com a qual precisamos trabalhar e que nos condena a um certo paroquialismo. Até dá para estender nossos sentimentos de preservação à família e a pequenos grupos, mas, como observa Damásio, é irrealista esperar que uma harmonia homeostática brote espontaneamente em nossas sociedades multiculturais. 

Quanto mais diversos os grupos, maiores as chances de conflito. Nossa única esperança, diz Damásio, é que, por meio da educação, sejamos, apesar das diferenças, capazes de cooperar em torno de objetivos fundamentais.

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