Como carta de Hélio Bicudo sobre Esquadrão da Morte ficou lacrada por 40 anos

Então procurador de Justiça, jurista morto em julho investigava grupo de policiais assassinos

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Frederico Vasconcelos

[RESUMO]  Em 1970, ameaçado, o então procurador da Justiça Hélio Bicudo escreveu carta para ser lida apenas se desaparecesse; aberto mais de 40 anos depois, documento que foi guardado por padres relata tensão entre autoridades a respeito de crimes na ditadura.

O jurista Hélio Bicudo em fotografia de 1981 - Folhapress

Em agosto de 1970, o procurador da Justiça Hélio Bicudo foi despertado de madrugada por um telefonema anônimo ameaçador: “Convém que você pense no que está se metendo”.

O autor da intimidação identificou-se como “Lírio Branco”, como era conhecido o “relações públicas” do Esquadrão da Morte, bando de policiais que assassinava marginais e desovava os corpos em rodovias.

Bicudo investigava o grupo, não só enfrentando a resistência dos governos estadual e federal mas também sem o apoio do Ministério Público paulista, do qual era membro de segunda instância.

Por cautela, no dia 31 daquele mês, escreveu uma carta-depoimento e entregou uma cópia a amigos, com a seguinte orientação: “Este depoimento fica liberado para publicação na imprensa nacional e internacional, com a notícia de minha morte”.

Adiante, escreveu: “Se ocorrerem danos parciais ou totais à minha pessoa, responsabilizo o governo brasileiro”. E concluiu: “Espero que o meu holocausto não tenha sido em vão”.

Página de carta confidencial que Hélio Bicudo deixou com amigos em 1970, quando era ameaçado por investigar o Esquadrão da Morte - Arquivo pessoal

No dia 1º de setembro de 1970, a Folha noticiou que Bicudo confirmara, na véspera, “ter recebido no fim de semana novas ameaças supostamente de elementos daquele grupo clandestino”. Mas o procurador disse ao jornal que não dava muita importância a essas tentativas de intimidação feitas por telefonemas anônimos. Afirmou que algumas delas não passariam de trote.

Ao contrário do que supunha “Lírio Branco”, Bicudo sabia muito bem o que estava fazendo. No livro “Minhas Memórias”, publicado em 2006 pela editora Martins Fontes, ele afirma que “não tinha dúvidas de que estava metendo as mãos num vespeiro”.

Semanas antes de distribuir a carta, o procurador oferecera denúncia contra três investigadores. Na correspondência aos amigos, ele diz que estava “na iminência de levar às barras dos tribunais vários policiais, investigadores e delegados, e, dentre estes, o dr. Sérgio Paranhos Fleury”.

Na definição de Bicudo, “o delegado responsável por caçar militantes de esquerda era o mesmo homem que estava por trás do grupo que eliminava criminosos ‘pé de chinelo’”.

Um dos destinatários da carta foi o padre Paul-Eugène Charbonneau, teólogo canadense idealizador do projeto educacional do Colégio Santa Cruz, de São Paulo.

O documento permaneceu guardado em envelope lacrado, com recomendação manuscrita por Charbonneau de que só deveria ser aberto por ele ou pelos padres Lionel Corbeil, fundador do colégio, ou Paul Grénier, então diretor-geral.

A correspondência sobreviveu aos três. Charbonneau morreu em 1987; Corbeil, em 2001; Grénier, em 2010. 

A carta foi encontrada nos documentos do colégio em 2014. O diretor-geral do Santa Cruz, Fábio Marinho Aidar Jr., delegou ao padre José Amaral de Almeida Prado a missão de abrir o envelope. Bicudo autorizou a divulgação do texto em evento da escola sobre os 50 anos da ditadura.

A menção à missiva seria um testemunho do ambiente da escola, nos anos 60 e 70, e uma forma de esclarecer por que Bicudo confiara sua carta aos padres da congregação.

Com a morte de Bicudo, no último dia 31 de julho, a instituição decidiu dar maior divulgação ao documento. O colégio pediu autorização a José Eduardo Bicudo, filho do jurista, professor honorário da Universidade de Wollongong, na Austrália. 

José Eduardo transcreveu a carta no site Diário do Centro do Mundo e afirmou: “Hélio Bicudo, nos anos 1970, ou seja, durante o auge da ditadura militar, enfrentou não apenas os militares e governantes de plantão, mas também setores do próprio Ministério Público do qual era integrante, pondo em risco a sua própria vida, para lutar pelo resgate de princípios fundamentais da dignidade humana, completamente sufocados pelos donos do poder naquela época”.

No mesmo espaço, disse considerar um equívoco do pai ter sido um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT). A seu ver, o jurista “não soube preservar o seu patrimônio histórico, acumulado durante a maior parte da sua vida”.

José Eduardo ainda afirmou: “Uma coisa é inequívoca, em um passado não tão longínquo, Hélio Bicudo sabia muito bem de que lado da história se encontrava”.

O Colégio Santa Cruz escolheu enviar cópia da carta de Bicudo à Folha porque Charbonneau foi colaborador regular do jornal a partir de 1980.

A carta, sigilosa até alguns anos atrás, indica o clima de um passado cujos detalhes os historiadores ainda hoje lutam para conhecer, por meio de pesquisa em arquivos e leituras de documentos como esse. 
O homem que assina o testemunho para a posteridade era um procurador atormentado pela omissão das autoridades. Em março de 1969, ele pedira ao então procurador-geral de Justiça, Dario de Abreu Pereira, que o Ministério Público apurasse as responsabilidades dos assassinatos de marginais.

“Instado por amigos, deixei de tomar conhecimento —e isto me pesa— das inúmeras execuções que estavam sendo cometidas pelo Esquadrão da Morte, sem que as autoridades adotassem quaisquer medidas. Com a omissão, houve expansão dessa atividade criminosa”, afirmou.

Ele voltou a se dirigir ao procurador-geral quando já haviam sido registradas dez execuções e presos eram retirados do Presídio Tiradentes para ser assassinados.

Em 23 de julho de 1970, o procurador-geral designou Bicudo para supervisionar as investigações sobre o Esquadrão da Morte. Ele chegou a desconfiar que a portaria seria uma forma de desgastá-lo mais adiante.

“Tive a impressão de que se me preparava uma armadilha com a minha designação. A insistência em investigar era minha. Como, supostamente, não haveria meios para levá-la a bom termo, o fracasso seria contabilizado a meu descrédito, no Ministério Público e fora dele”, disse.

Os fatos comprovariam que a suspeita era procedente. Bicudo contou com a ajuda dos promotores Dirceu de Mello e José Silvio Fonseca Tavares. Tão logo designado, foi ao Tribunal de Justiça de São Paulo, onde teve acesso às sindicâncias da Vara da Corregedoria dos Presídios. Procurou, sem sucesso, o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, a quem pediu apoio. “Sugeri ao ministro que me credenciasse perante a Polícia Federal em São Paulo.” Buzaid respondeu que deveria “percorrer a hierarquia”.

Ao regressar a São Paulo, viu nos jornais a notícia de que estava sendo ameaçado pelo Esquadrão da Morte. “Neguei a veracidade da notícia e recusei o oferecimento da montagem de um serviço de segurança pessoal.”

O secretário de Segurança Pública, coronel Danilo Darcy de Sá da Cunha e Melo, afirmou que Bicudo “poderia ser morto pelos comunistas, interessados sempre em tudo confundir.” Diante disso, o procurador ficou sujeito a um serviço de segurança a ser executado pelo Dops.

Melo disse que daria todo o apoio, mas “não desejava que qualquer apuração se fizesse no âmbito da secretaria, pois, se nada se apurasse, como ele previa, não se poderia dizer que ele [o coronel] ‘pusera as mãos em cima’”.

Bicudo então recorreu ao coronel aviador Luiz Maciel Jr., da Comissão de Gestão da Informação da Aeronáutica (CGI), em São Paulo. Perguntou se poderia ajudá-lo.

Maciel Jr. sugeriu uma “união de esforços das três Armas” e propôs uma reunião na casa do secretário de Segurança. Nesse encontro, Melo informou que o governador Roberto Costa de Abreu Sodré criara, na véspera, uma comissão que deveria tratar do assunto Esquadrão da Morte e que Bicudo estava “praticamente desligado das funções”.

“Numa ameaça velada à minha pessoa”, o secretário disse que, “se de minha atuação resultassem conclusões em desabono da polícia, decorrentes de possíveis choques entre os órgãos civis e militares, capazes de atingir a própria magistratura, eu poderia ser responsabilizado e punido”, escreveu Bicudo.

O serviço de segurança foi retirado da residência de Bicudo. “As ameaças começaram a se intensificar, trazendo um clima de intranquilidade à minha família”, registrou.

Bicudo decidiu pedir apoio ao coronel Otávio Costa, chefe da assessoria especial de Relações Públicas da Presidência da República. Foi-lhe recomendado procurar o chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações) em São Paulo, coronel Walter Faustini. Este se limitou a ouvir.

Essa barreira, segundo Bicudo, “dava bem o apreço que as autoridades tinham pelos policiais antes delinquentes e que já agora se diziam servirem à causa da Segurança Nacional”.

O promotor João Batista Santana, assessor jurídico da Secretaria de Segurança, afirmou ao procurador que “temia pela sorte” de Bicudo, caso Fleury viesse a ser implicado.

Santana disse que o problema se misturava “com a política, adotada pelo 2º Exército”, representado no governo pelo secretário-coronel, “que não iria admitir uma acusação formal contra esse policial” [Fleury].
Diante disso, Bicudo passou a admitir três alternativas: a) seu afastamento por ato do procurador-geral; b) cassação de seus direitos políticos, com a aposentadoria compulsória; c) sua eliminação.

“Creio que a concretização da última alternativa [eliminação] era a mais racional”, pois poderia “ser atribuída aos comunistas ou aos marginais, interessados, uns e outros, em desmoralizar o governo”, escreveu.

Bicudo diz que não houve nenhum gesto oficial para prevenir essa ameaça. O governo contribuiu “com sua criminosa omissão e até mesmo, por seus representantes, do governo de São Paulo e do 2º Exército, chegou a incentivá-la”.

No dia 2 de agosto de 1971, Bicudo foi exonerado pelo então procurador-geral de Justiça, Oscar Xavier de Freitas. Foi afastado das investigações sobre o Esquadrão da Morte. 


Frederico Vasconcelos é repórter especial da Folha.

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