Descrição de chapéu

Cida Bento: Gente que transforma

A dor, a indignação e a comoção que se seguiram ao assassinato de Marielle só não foram maiores do que nosso desejo de transformar luto em luta

Escadaria da Rua Cristiano Viana, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, amanheceu com retrato em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL) - Danilo Verpa/Folhapress

Conteúdo restrito a assinantes e cadastrados Você atingiu o limite de
por mês.

Tenha acesso ilimitado: Assine ou Já é assinante? Faça login

O seminário "Gente que transforma", que ocorrerá nesta quarta-feira (21), instituído pela ONU como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, foi preparado para ser um evento inspirador e mobilizador da sociedade para a importância da equidade racial e de gênero na educação.

Fomos, no entanto, surpreendidos e  fortemente impactados —como de resto, todo o país— pelo assassinato da jovem parlamentar negra Marielle Franco. A dor, a indignação e a comoção que se seguiram só não foram maiores do que nosso desejo, que se une ao do movimento de mulheres negras de todo o país, de transformar luto em luta.

Assim, este evento pretende homenageá-la e sinalizar que devemos, juntos, lutar contra o racismo que estrutura as relações sociais no país, atribuindo menos valor às vidas negras ceifadas cotidianamente. 

A frase "Eu não sabia que meus antepassados eram tão valorosos" —dita por um estudante negro do ensino médio do norte do Brasil, em setembro de 2017, em uma das escolas visitadas para avaliação dos impactos de experiências de promoção da equidade de gênero e raça— retrata a importância da presença e valorização da cultura e história negras nas escolas,  conferindo efetividade à alteração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) pela Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras nas escolas.

Diversos estudos demonstram que a evasão escolar é causada, entre outros fatores, por uma escola desinteressante, que não dialoga com a cultura do estudante. Dessa maneira, o estudo das contribuições civilizatórias de africanos e seus descendentes no Brasil significa um reencontro do país consigo próprio, com sua africanidade. É deslocar o olhar de quem ainda vive de frente para a Europa e de costas para o Brasil para uma educação igualitária, que verdadeiramente valorize a diversidade de seu povo.

Neste sentido, o Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) revisitou escolas das cinco regiões do país que há dez anos vêm desenvolvendo práticas de promoção da equidade de raça e de gênero. Queríamos verificar os desdobramentos dessas ações na vida de alunos, professores e gestores, nas famílias e em toda a comunidade escolar.

A partir de um acervo de mais de 3.000 práticas inscritas no prêmio "Educar para a Igualdade Racial e de Gênero" —iniciativa organizada há 16 anos pela instituição e por parceiros—, provindas de todos os estados brasileiros, foram escolhidas dez delas, com representatividade nas cinco regiões do país, para serem visitadas, esmiuçadas e registradas em vídeo, como forma de fazer uma avaliação de seu impacto, anos depois da premiação que obtiveram.

Analisando essas boas práticas, encontramos iniciativas que recuperaram e valorizaram a trajetória, a memória e as lutas da população negra e indígena, e que se expressaram na arte, matemática, geografia, história, enfim, em diferentes disciplinas. "Flash mob", "hip hop" e outras expressões hoje presentes no universo dos adolescentes, apareceram, lado a lado, com tambor de criola, bumba meu boi ou jogos africanos.

Pesquisas sobre etimologia, músicas e danças infantis de países africanos, sobre brincadeiras e brinquedos antigos apresentados pelas pessoas mais velhas da localidade, foram elementos que surgiram como pontos fortes das iniciativas, algumas delas persistindo e sendo aprimoradas ao longo de uma década, passando a integrar o cotidiano da escola, tanto no âmbito pedagógico quanto da gestão escolar.

Para combater a evasão, mais acentuada entre crianças e jovens negros, é fundamental a criação de sentidos para a escola e para a educação em suas vidas. Uma escola que acolhe, de verdade, todas as crianças. E isso passa, necessariamente, pelo reconhecimento e valorização de sua história e de sua cultura no currículo escolar. Motivados pelo 21 de março, queremos nos juntar aos esforços de diversas organizações e lançar uma campanha nacional para a observância da previsão legal do ensino da história e cultura afro-brasileiras nas escolas. Convidamos você a fazer parte desse movimento.

Cida Bento

Diretora-executiva do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em Psicologia da Educação pela USP e apontada pela revista "The Economist" como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade

Relacionadas