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Pedro Fernando Nery: Bilhões? Não, trilhões

Há uma ideia entre os brasileiros de que, se falta dinheiro, é por causa da corrupção; as cifras previdenciárias, porém, têm bem mais zeros à direita, daí a urgência da reforma 

Ministros de Michel Temer se reúnem para anunciar fim da tramitação da reforma da Previdência, em 19 de fevereiro - Fátima Meira/Futura Press/Folhapress

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Pedro Fernando Nery

Após anos de cadeia, Júlia quer se reconectar com a filha única, mas é impedida pela socialite Yolanda ---sua própria irmã, que, não tendo filhos próprios, adotou a sobrinha. Júlia conseguirá se aproximar da filha e romperá seu casamento com um milionário para viver para sempre com o amor de sua vida.

O ano é 1978, e a novela é "Dancin' Days". No fim, a personagem de Sônia Braga fica com o de Antonio Fagundes, larga Ary Fontoura, consegue o perdão de Glória Pires e vence a vilã Joana Fomm.

Para estudo publicado no "American Economic Journal: Applied Economics", novelas como "Dancin' Days" influenciaram a forte redução da taxa de fertilidade das brasileiras. Ele conclui que a expansão da TV Globo pelo país nas décadas de 1970 e 1980 afetou as escolhas das mulheres, como número de filhos e até seus nomes.

O estudo merece ressalvas, mas é uma simpática explicação para um enigma: por que o envelhecimento da população é tão mais rápido no Brasil do que em outros países? A França fez em mais de cem anos o que faremos em apenas 20.

Em 1960, a média de filhos por mulher no Brasil era de pouco acima de 6. No ano de "Dancin' Days", acima de 4. Desde a década passada, está abaixo de 2 e não repõe a população. Nos anos 2030, chegará a apenas 1,5.

Com mais aposentados e pensionistas recebendo por mais tempo e menos jovens trabalhando e contribuindo, há uma óbvia dificuldade de financiamento da Previdência.

Em 2018, 40 anos após "Dancin' Days", a reforma deve estar no centro do debate. Ao contrário de outros temas nas manchetes, o problema da Previdência é de ação coletiva. Não comporta uma visão maniqueísta, que nos divida entre bons e maus, como os debates sobre corrupção, ou os flá-flus ideológicos, partidários e eleitorais. Esta história não tem cara.

Porém, diante do noticiário carregado com imagens da operação Lava Jato, é incompreensível para parte da população a existência de um problema na Previdência. É comum o comentário de que, se falta dinheiro, é por causa da corrupção.

Há uma diferença de ordem de grandeza. A luta contra a chaga da corrupção é louvável, mas incapaz de fazer frente às cifras previdenciárias, com mais zeros à direita. O Estado brasileiro gasta mais de R$ 850 bilhões por ano com benefícios de natureza previdenciária.

As malas encontradas no bunker atribuído ao ex-ministro Geddel Vieira Lima somaram R$ 51 milhões, ou o equivalente a meia hora do gasto previdenciário. Já a quadrilha liderada por Sérgio Cabral teria acumulado R$ 500 milhões ao longo de anos. Isso dá duas semanas de déficit da previdência do Estado que ele governou (R$ 12 bilhões/ano).

É um debate mais urgente do que os hábitos de Adriana Ancelmo, mulher de Cabral, apesar de a ausência de personagens torná-lo menos envolvente. Se o filme da Lava Jato foi um sucesso, um sobre a reforma da Previdência jamais será feito.

Aliás, em uma das cenas do filme, um protagonista explica a Lava Jato em entrevista coletiva: "Estamos falando de empresas que têm R$ 59 bilhões em contratos". Um jornalista, espantado, pergunta: "Milhões!?". O delegado responde: "Não, bi, bilhões."

O déficit atuarial da Previdência calculado pelo Tesouro é de R$ 14,6 trilhões. Na ausência de mudanças, a sociedade financiará essa diferença com menos investimento em políticas públicas, e mais inflação, impostos e dívida (mais juros). As consequências são intuitivas sobre o desenvolvimento, a geração de oportunidades e o bem-estar social. Bilhões? Não, tri, trilhões.

PEDRO FERNANDO NERY, bacharel e mestre em economia pela Universidade de Brasília, é consultor legislativo

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