Assistente
social adiou o mestrado em políticas sociais para se
dedicar a mudar a vida de moradores de rua
Mãe de dois filhos, Renata Aparecida Ferreira ganhou
uma bolsa de estudo e veio sozinha, em 2004, do interior de
São Paulo para a capital, com o objetivo de fazer mestrado
na PUC. Seu plano era estudar para trabalhar na área
de recursos humanos em empresas, mas trancou a matrícula
na faculdade. Hoje, é muito mais provável encontrá-la
debaixo do viaduto, entre viciados em crack, do que numa sala
de aula. Essa foi a melhor coisa que poderia ter acontecido
para seus estudos. "Mudei meu foco."
Mudou não só de foco acadêmico, mas de
vida. Como assistente social, ela se sentiu atraída
pelo submundo da rua, muito diferente do ambiente asséptico
das corporações empresariais com as quais pretendia
trabalhar e mais ainda da pacata Cândido Mota, sua cidade
no interior, com 28 mil habitantes. "Meu prazer passou
a ser estimular e acompanhar os ínfimos avanços
que um morador de rua possa apresentar. Às vezes, um
simples banho é uma vitória."
Em seu primeiro ano no mestrado em políticas sociais,
Renata começou a trabalhar na Secretaria de Desenvolvimento
Social da cidade de São Paulo, mas não estava
satisfeita com os serviços burocráticos e pediu
que fosse mandada para a rua - literalmente. Convivendo com
aqueles seres solitários, marcados pela inviabilidade,
logo aprendeu sua primeira lição. "Precisamos
estar treinados para lidar intensamente com a frustração."
Ontem, ela passou por mais um teste de resistência à
frustração.
Há uma semana, Renata está cuidando de Charles
Fonseca. Tuberculoso e viciado em drogas, mas apontado
por músicos como um gênio da flauta, ele é
mais uma vítima da dependência do crack, que
o levou a viver numa caverna debaixo do Minhocão, em
São Paulo. Debilitado, o flautista disse-lhe que "queria
mesmo" largar o crack.
Renata conseguiu encaminhá-lo para o tratamento do
pulmão e arranjou-lhe um lugar para morar, enquanto
acertava os detalhes de sua internação numa
clínica especializada em dependência química.
Estava articulando um emprego para ele numa orquestra. A assistente
social apostou no poder da música, especialmente quando
presenciou um surto nervoso do rapaz: Charles não aceitava
ser internado caso não lhe trouxessem sua flauta. "Quando
chegou a flauta, ele enfim dormiu."
O poder da droga, porém, foi maior. Charles fugiu do
hospital na segunda-feira à noite e ontem já
era visto em sua caverna no Minhocão, quase sem consciência,
rodeado de cachimbos de crack. "Ainda não desisti",
afirma Renata, que, depois de tantas vivências, já
tem pelo menos uma certeza sobre seu futuro acadêmico:
sua dissertação de mestrado será sobre
a população de rua - um tema em que a prática,
e não os livros, já fez dela uma doutora.
PS - Coletei as poucas músicas gravadas por Charles
e as coloquei neste
link. É fácil perceber, ouvindo sua performance,
porque diziam que ele seria, não fosse a droga, um
dos maiores flautistas do mundo -e também se entende
o tamanho do teste de resistência à frustração
de Renata, vendo escorrer pelos dedos tanto talento.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria
Cotidiano.
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