REFLEXÃO


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urbanidade
02/04/2008

Doutorada na rua

Assistente social adiou o mestrado em políticas sociais para se dedicar a mudar a vida de moradores de rua


Mãe de dois filhos, Renata Aparecida Ferreira ganhou uma bolsa de estudo e veio sozinha, em 2004, do interior de São Paulo para a capital, com o objetivo de fazer mestrado na PUC. Seu plano era estudar para trabalhar na área de recursos humanos em empresas, mas trancou a matrícula na faculdade. Hoje, é muito mais provável encontrá-la debaixo do viaduto, entre viciados em crack, do que numa sala de aula. Essa foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para seus estudos. "Mudei meu foco."

Mudou não só de foco acadêmico, mas de vida. Como assistente social, ela se sentiu atraída pelo submundo da rua, muito diferente do ambiente asséptico das corporações empresariais com as quais pretendia trabalhar e mais ainda da pacata Cândido Mota, sua cidade no interior, com 28 mil habitantes. "Meu prazer passou a ser estimular e acompanhar os ínfimos avanços que um morador de rua possa apresentar. Às vezes, um simples banho é uma vitória."

Em seu primeiro ano no mestrado em políticas sociais, Renata começou a trabalhar na Secretaria de Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo, mas não estava satisfeita com os serviços burocráticos e pediu que fosse mandada para a rua - literalmente. Convivendo com aqueles seres solitários, marcados pela inviabilidade, logo aprendeu sua primeira lição. "Precisamos estar treinados para lidar intensamente com a frustração." Ontem, ela passou por mais um teste de resistência à frustração.

Há uma semana, Renata está cuidando de Charles Fonseca. Tuberculoso e viciado em drogas, mas apontado por músicos como um gênio da flauta, ele é mais uma vítima da dependência do crack, que o levou a viver numa caverna debaixo do Minhocão, em São Paulo. Debilitado, o flautista disse-lhe que "queria mesmo" largar o crack.

Renata conseguiu encaminhá-lo para o tratamento do pulmão e arranjou-lhe um lugar para morar, enquanto acertava os detalhes de sua internação numa clínica especializada em dependência química. Estava articulando um emprego para ele numa orquestra. A assistente social apostou no poder da música, especialmente quando presenciou um surto nervoso do rapaz: Charles não aceitava ser internado caso não lhe trouxessem sua flauta. "Quando chegou a flauta, ele enfim dormiu."

O poder da droga, porém, foi maior. Charles fugiu do hospital na segunda-feira à noite e ontem já era visto em sua caverna no Minhocão, quase sem consciência, rodeado de cachimbos de crack. "Ainda não desisti", afirma Renata, que, depois de tantas vivências, já tem pelo menos uma certeza sobre seu futuro acadêmico: sua dissertação de mestrado será sobre a população de rua - um tema em que a prática, e não os livros, já fez dela uma doutora.

PS - Coletei as poucas músicas gravadas por Charles e as coloquei neste link. É fácil perceber, ouvindo sua performance, porque diziam que ele seria, não fosse a droga, um dos maiores flautistas do mundo -e também se entende o tamanho do teste de resistência à frustração de Renata, vendo escorrer pelos dedos tanto talento.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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