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A beleza
dos corpos, iluminados pelos holofotes, contracenava com os
movimentos daqueles seres vestidos de farrapos
Na quinta-feira passada, eram 19h quando deixei o prédio
da Folha e, depois de dez minutos de caminhada, me vi inesperadamente
metido numa coreografia.
Consumidos pelo crack, dezenas de homens e mulheres pareciam
inumanos, irreais, alguns berrando, outros estatelados no
chão. A cena desenrolava-se entre as ruas Guaianazes
e Vitória, a poucos metros da rua Aurora, onde existe
uma delegacia de polícia. Aquela era apenas uma imagem
rotineira da cracolândia, onde as palavras vitória
e aurora soam como ironia macabra. Para completar a ironia,
estamos no bairro da Luz.
A novidade surgiu quando atravessei a rua e entrei pela porta
de um galpão, quase totalmente vedado, no número
485 da rua Vitória, onde 36 jovens de periferia ensaiavam
para um musical a ser lançado em agosto. Como estavam
frescas as cenas que eu tinha visto do lado de fora, era como
se o espetáculo misturasse as duas coreografias, separadas
apenas por uma porta -a beleza dos corpos, iluminados pelos
holofotes, contracenava com os movimentos daqueles seres vestidos
de farrapos ou enrolados em cobertores velhos e fedorentos,
cujos rostos só apareciam fugazmente pela luz da chama
dos cachimbos de crack.
A beleza se destacou nesse choque de imagens tão contrastantes,
cujo único ponto entre as coreografias era a idade
dos jovens.
Começou a funcionar no galpão um teatro-escola
criado por Ivaldo Bertazzo, que, nos últimos anos,
vem se dedicando a trabalhar a dança com jovens de
periferia do Rio e de São Paulo.
O que ocorre naquele clandestino espaço mostra que
essa junção da arte com a educação
é uma das melhores receitas contra a barbárie,
por gerar a sensação de pertencimento, reverência
ao belo, prazer e perspectiva de futuro -está aí
um dos importantes assuntos a serem tratados pelos candidatos
a prefeito.
Não tenho números para comprovar, mas aposto
que, entre as múltiplas causas da extraordinária
queda da violência na cidade de São Paulo -estima-se
que, neste ano, a redução do índice de
assassinatos vá ser de 80% em relação
a 1999- está a expansão da cultura combinada
com a educação, especialmente na periferia.
Esse não é nem de longe o principal fator, mas
ajuda a criar um clima mais acolhedor.
Esse é um dos fatos novos da cidade de São Paulo,
onde, segundo o Datafolha, nada preocupa tanto quanto a insegurança
-muito mais do que, por exemplo, o trânsito.
Criados na gestão de Marta Suplicy e ampliados com
Gilberto Kassab, os CEUs ainda não se notabilizaram
pela excelência acadêmica -a nota dos alunos está
na média da capital, o que é ruim, mas funcionam
como centros comunitários que são verdadeiros
oásis culturais na periferia. Neste ano, receberam
também o programa Fábrica de Cultura, mantido
pelo governo estadual.
Diversas escolas municipais passaram a ter oficinas de arte
em contraturno e a ser estimuladas a se conectar mais com
teatros, museus e cinemas. Geraldo Alckmin criou as escolas
estaduais de tempo integral (a exemplo dos CEUs, sem bons
resultados nas notas), que oferecem opções culturais
-é o que ocorre num programa ainda mais amplo (Escola
da Família), também da gestão de Alckmin,
que deixa as escolas abertas nos fins de semana.
Há programas municipais e estaduais, muitos dos quais
concentrados nas periferias, de dança, música,
teatro e comunicação, instalados nos mais diferentes
espaços. Foi institucionalizada a cultura do hip hop;
basta ver que São Paulo é referência mundial
em grafite. Há dois anos, foi criado um atraente centro
para a juventude na Brasilândia, zona norte da cidade.
Tudo isso se soma à rede do Sesc e do Sesi.
Nos últimos anos, têm prosperado nas comunidades
experiências como a orquestra do maestro Bacarelli,
em Heliópolis, os saraus de poesia da Cooperifa, na
zona sul, e a biblioteca criada no que foi um ponto de tráfico
de drogas na favela Sabin, uma iniciativa de Mano Brown e
Ferréz.
Há vários programas desse tipo no Jardim Ângela,
que, no passado, foi apontado como a região mais violenta
do planeta; perto dali está um cemitério conhecido
como o lugar com mais adolescentes enterrados por metro quadrado.
Hoje, aquela região é conhecida, também
mundialmente, por seu programa de articulação
pela paz.
Uma pesquisa do Datafolha mostrou que cresce expressivamente
a presença de estudantes mais pobres nos museus -isso
se deve, em parte, à atratividade de lugares como o
Museu da Língua Portuguesa.
Todos esses fatos significam que, nesta campanha municipal,
é importante prestar atenção à
viabilidade das propostas que mesclam educação
e cultura, apresentadas na semana passada.
Kassab se compromete a criar a "escola de sete horas";
Marta afirma que vai ampliar o horário de aulas, tirando
mais proveito dos espaços culturais da cidade; Alckmin
diz que vai dar prosseguimento, agora na esfera municipal,
ao projeto de tempo integral nas escolas. Nada disso indica
que São Paulo seja um paraíso cultural -a cidade,
aliás, está mais para os viciados em crack do
que para os dançarinos de Bertazzo, mas vai aprendendo
a dançar nas luzes.
PS - Um dos registros mais impressionantes que conheço
sobre o poder da arte de transformação em comunidades
periféricas será apresentado, na próxima
semana, no Sesc. Durante vários anos, a fotógrafa
Mila Petrillo viajou pelo Brasil documentando crianças
e adolescentes das regiões pobres submetidos ao encantamento
da arte. As fotos estão
neste link.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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