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Brasil só tem a perder com a Alca, diz embaixador

JULIA DUAILIBI
da Folha de S.Paulo

Beto Barata/ Folha Imagem
Presidente FHC tira os oculos e olha nos olhos do Presidente dos EUA, George Bush, durante encontro no salao oval da Casa Branca em Washington

A Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, vai destruir o projeto de desenvolvimento autônomo e de construção da sociedade brasileira. A política econômica atual aumenta a dependência econômica em relação ao exterior. Tais opiniões, que no debate atual poderiam ser chamadas de nacionalistas e protecionistas, são defendidas com vigor pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, 61, exonerado na semana passada da direção do Ipri (Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty).

Para ele, a inserção brasileira no processo de globalização é "no mínimo despreocupada", além de prejudicial à industria nacional.

Suas opiniões acabaram por fazer com que ele se tornasse o primeiro diplomata brasileiro a ser exonerado de sua função, por discordar da posição oficial do Ministério das Relações Exteriores.

Com base na nova norma que proíbe funcionários do Itamaraty de se pronunciarem sobre política externa sem autorização do ministério, conhecida como "lei da mordaça", o ministro Celso Lafer demitiu-o do cargo há nove dias.

Advogado, com mestrado em economia pela Universidade de Boston, Guimarães já foi conselheiro da embaixada do Brasil na França, chefe do departamento econômico e chefe da divisão econômica para a América Latina do Itamaraty antes de assumir a direção do Ipri em 1995. É autor do livro "500 Anos de Periferia".

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à Folha por e-mail e fax.

Folha - O que o sr. acha da política brasileira para a globalização?

Samuel Pinheiro Guimarães - A política brasileira tem se caracterizado por uma inserção no mínimo despreocupada no processo de globalização, em busca de fugaz e ilusória "credibilidade" junto à comunidade financeira internacional. Reduziram tarifas unilateralmente; não controlaram os capitais especulativos; aceitaram investimentos estrangeiros sem compromissos de tecnologia ou de exportação; abdicaram de instrumentos de promoção de exportações e finalmente aceitaram regras que limitam a autonomia da política econômica. O resultado é um notável desequilíbrio em conta corrente e a necessidade de captar cerca de US$ 30 bilhões anuais e, com o desaquecimento da economia americana, surge a possibilidade crescente de sérias dificuldades de pagamentos.

Folha - Na visão do sr. o Brasil tem condições de derrubar as barreiras não-tarifárias norte-americanas para os produtos brasileiros?

Guimarães - Os países desenvolvidos, cuja média tarifária hoje em dia é baixa, utilizam as barreiras não-tarifárias, complexas, dúbias e arbitrárias, para defender setores frágeis de suas economias e reestruturá-los. Esses setores, em geral, dispõem de ampla força política e de representação no Congresso americano, que vota e faz implementar sistemas de normas técnicas fitossanitárias a que se agregam sistemas antidumping, de direitos compensatórios e de subsídios amplos e complexos. Julgar que será possível ao Brasil desarmar essa teia de proteção americana a partir das negociações da Alca é simplesmente ilusório e diversionista. Os EUA já declararam com franqueza que sua legislação interna não está em jogo nas negociações.

Folha - O Brasil seria o país que mais teria a perder com a Alca?

Guimarães - O Brasil é um dos poucos países latino-americanos com características de território, de população, de recursos naturais, de nível de desenvolvimento, de industrialização e de tecnologia que teria condições de construir uma sociedade verdadeiramente democrática, desenvolvida, próspera e justa, com alto grau de autonomia. Que teria condições de participar em pé de igualdade com as chamadas grandes potências no cenário internacional, cada vez mais arbitrário, violento e concentrador. Assim, as negociações da Alca tornariam impossível este objetivo, ao limitarem a possibilidade de o Estado brasileiro desenvolver as políticas comerciais, industriais e tecnológicas necessárias à construção da economia brasileira e ao fortalecimento de sua sociedade.

Folha - Há estimativa de como ficaria a balança comercial brasileira com a Alca?

Guimarães - Há estimativas e todos os estudos são unânimes em concluir que haveria, com a redução de obstáculos, como não poderia deixar de ser, um aumento das exportações brasileiras. Isso apesar das dificuldades de conhecimento das elasticidades renda e preço a nível de produto específico, das imprevisibilidades da legislação e da situação de demanda das economias. No entanto o aumento das importações brasileiras seria bem mais significativo, o que seria grave para um país com urgência cada vez maior de gerar um superávit comercial, devido ao quadro preocupante de seus compromissos externos, públicos e privados.

Folha - O Mercosul acabou?

Guimarães - O Mercosul não acabou, mas, como união aduaneira, ele corre riscos. Primeiro, as tentativas de transformá-lo em zona de livre-comércio. Segundo, as tentativas para reduzir os níveis da tarifa externa comum. Terceiro, as negociações com a Alca e com a União Européia.

Folha - O sr. costuma dizer que uma política externa alternativa para o Brasil seria exatamente o inverso do Consenso de Washington. Como seria essa inversão?

Guimarães - Um país com as características continentais do Brasil deve dar prioridade à construção de seu mercado interno, ao fortalecimento da poupança interna, ao desenvolvimento tecnológico próprio, ao pleno emprego de seus fatores de produção e ao fortalecimento do capital nacional. Considerando as disparidades internas e a vulnerabilidade externa, são necessárias políticas comerciais, agrícolas, industriais, tecnológicas e de emprego para obter resultados que o livre jogo das forças do mercado não pode alcançar, dados a presença de oligopólios internacionais, população crescente e da baixa produtividade e dificuldades de acesso ao mercado externo. A abertura total e o Estado mínimo preconizados pelo consenso são incompatíveis com o desenvolvimento.

Folha- Pode-se ver um esgotamento da hegemonia norte-americana ou o século 20 foi sua prova?

Guimarães - O século 20 se caracterizou pela disputa entre o modelo capitalista e o socialista, pela disputa pela liderança do sistema capitalista e pelo fim dos impérios coloniais, estrutura que prevaleceu por 450 anos. Essas disputas terminaram com a vitória dos EUA. Mas o século 21 se caracterizará pela emergência de um sistema multipolar de disputa e cooperação entre EUA, União Européia, China e Rússia. No sistema multipolar, os grandes Estados da periferia, como a Índia e o Brasil, têm grandes possibilidades de se desenvolver e de se afirmar, caso não se deixem incorporar a esferas de influência e não aceitem normas restritivas de sua autonomia econômica e política.

Folha - O que o sr. acha da regra que impede o pronunciamento dos embaixadores, imposta pelo ministro Celso Lafer?

Guimarães - Esta regra contraria frontalmente a Constituição.

Folha - O que mudou da gestão Lampreia para a gestão Lafer?

Guimarães - É cedo para julgar.




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