São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001


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CRISE

A forma de encarar o alimento passa por um contraditório processo de mudança

Tecnologia e epidemias provocam o medo de comer

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
EDITORA-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Alimento: [Do latim alimentu" Substantivo masculino.
1. Substâncias artificiais criadas para a manutenção da vida. De características e origens desconhecidas, antigamente eram associadas a produtos da natureza e valores culturais.
2. Produtos tóxicos, que podem causar alergia, doenças e morte.
3. Substâncias tecnologicamente alteradas com fim medicinal.
Não é tão difícil imaginar que, em um futuro próximo, essas sejam as definições do verbete "alimento" em dicionários.
A forma como as pessoas encaram os alimentos vem passando por um contraditório processo de mudança, em que eles são vistos com temor e, ao mesmo tempo, como salvação.
As imagens de gado sendo sacrificado para impedir a transmissão da febre aftosa, o medo do mal da vaca louca e a desconfiança com a manipulação genética de alimentos estão na ordem do dia, provocando insegurança nas pessoas.
Ao mesmo tempo, a indústria da saúde passa pela maior bonança: leite que protege o coração, milk-shake que substitui refeições, bolachas doces turbinadas com vitaminas, a lista dos produtos à venda não tem fim.
Os desenvolvimentos tecnológicos hoje vistos com desconfiança são os que permitiram que os alimentos estivessem à disposição de um maior número de pessoas.
A Revolução Verde, iniciada nos anos 60, aumentou a oferta e derrubou o preço de alimentos por meio do uso intensivo de espécies melhoradas de plantas e defensivos agrícolas (como os agrotóxicos).
A ampliação do uso de aditivos químicos como os conservantes permitiu que alimentos percorressem grandes distâncias. A pecuária intensiva, com o confinamento dos animais e o uso de ração, produz o mesmo efeito.
Pouco a pouco, a alimentação se torna mais e mais industrializada, e os alimentos que chegam à mesa são cada vez menos parecidos com a sua versão inicial. O rótulo de uma bebida gasosa feita com base na semente do guaraná tem, além desse extrato natural, corante, edulcorante, acidulante -uma infinidade de substâncias de origem desconhecida.

Comida "engenheirada"
Esse estranhamento e essa desconfiança quanto ao conteúdo estão no cerne da questão dos alimentos transgênicos, que são o ápice da transformação do alimento. Melhoramento de espécie, quando são cruzados certos espécimes para obter uma linhagem superior -garanhões reprodutores, por exemplo-, não é novo.
A diferença da engenharia genética é que são "importados" certos atributos de outras espécies, criando, no caso dos alimentos, o que os contrários à técnica chamam de "comidas Frankenstein".
Essa manipulação nos genes dos organismos, isto é, no conjunto de instruções que os fazem ser o que são, em geral, é feita por dois motivos: para aumentar o valor bioquímico do alimento -acrescentando nutrientes que antes não estavam presentes, por exemplo- ou para eliminar o uso de agrotóxicos -adicionando toxinas que matam os predadores (veja quadro nesta página).
A modificação genética é defendida e atacada com igual ferocidade. Opositores basicamente afirmam que a técnica ainda não é conhecida o suficiente para ser aplicada em larga escala (apesar de já o ser em países como os EUA) e para consumo humano (o que também já acontece, como mostram testes feitos pelo Instituto de Defesa do Consumidor).
Defensores afirmam que a técnica é segura, que proporciona maior rendimento por área plantada e menos uso de agrotóxicos. Os mais empolgados propõem a transgenia como solução para o problema da fome no mundo.

Descrença na tecnologia
O medo da manipulação genética é apenas o mais recente dos temores associados aos alimentos, que já há algum tempo são vistos com cautela. Desde os anos 80 existe o medo do leite radioativo, por causa da explosão da usina atômica de Tchernobil, os surtos de comida contaminada por salmonela e os sucessivos temores de que manteiga, aspartame etc. seriam cancerígenos, entre outros episódios.
Esse medo indica uma descrença na idéia de que a tecnologia, isto é, a interferência humana na natureza, seja capaz de produzir resultados benéficos.
A reação a isso é uma nostalgia das origens, o desejo de voltar ao passado natural, "puro". As seções de frutas, verduras e "produtos naturais" ocupam cada vez mais espaço nos supermercados.
A agricultura orgânica é um exemplo dessa tentativa de "retorno ao natural". Nela são usados pesticidas e fertilizantes naturais, com o intuito de produzir alimentos mais saudáveis e de forma menos nociva para o ambiente.
Uma pesquisa no Reino Unido, divulgada no mês passado pela rede BBC, apontou que 82% dos consumidores querem uma volta à agricultura tradicional, mesmo que isso signifique pagar mais. Mas é apenas uma elite mundial que pode se dar a esse luxo, com uma agricultura ainda não desenvolvida em larga escala.

Comida-remédio

Uma estranha mistura do natural com o tecnológico é o uso medicinal dos alimentos. Há muito já se sabe que muitos deles têm propriedades terapêuticas. A diferença dos nutracêuticos -neologismo a partir de (alimento) nutritivo e farmacêutico- é que os alimentos ou suas partes que contêm esse potencial são extraídos, condensados e comercializados em forma de cápsulas ou pílulas.
O mercado dos nutracêuticos já movimenta US$ 15 bilhões, mas escapa de regulamentação e, em geral, não há comprovação científica de seus supostos efeitos benéficos sobre a saúde.
"É uma crença ingênua de que a saúde vem pela boca. A nutrição é apenas um dos elementos para uma boa saúde", diz Fernando Lefèvre, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Por um lado, comer virou ato técnico, em que alimentos são escolhidos pelas propriedades bioquímicas -quantidade de calorias, proteínas-, não pelo gosto.
Por outro, como explicar a incrível diversidade de restaurantes, oferecendo as culinárias mais longínquas, a facilidade com que se compra a mesma fruta em todas as estações e até os índices alarmantes de crianças obesas?
Que se trata de uma revolução, não resta dúvida. E a transformação do alimento apresenta esses dois lados, com consequências ainda desconhecidas.
Portanto é difícil precisar sua dimensão na vida moderna. O correto, em contraponto ao verbete "alimento" do começo da reportagem, seria acrescentar as seguintes definições:
4. Substâncias que nutrem, sustentam a saúde e, portanto, a vida.
5. Fruto da biodiversidade da Terra, disponível em inúmeros tipos e formatos.
6. Essencial em confraternizações, é responsável por um dos maiores prazeres do ser humano.


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