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CRISE
A forma de encarar o alimento passa por um contraditório processo de mudança
Tecnologia e epidemias provocam o medo de comer
ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
EDITORA-ASSISTENTE DE CIÊNCIA
Alimento: [Do latim alimentu"
Substantivo masculino.
1. Substâncias artificiais criadas
para a manutenção da vida. De
características e origens desconhecidas, antigamente eram associadas a produtos da natureza e
valores culturais.
2. Produtos tóxicos, que podem
causar alergia, doenças e morte.
3. Substâncias tecnologicamente alteradas com fim medicinal.
Não é tão difícil imaginar que,
em um futuro próximo, essas sejam as definições do verbete "alimento" em dicionários.
A forma como as pessoas encaram os alimentos vem passando
por um contraditório processo de
mudança, em que eles são vistos
com temor e, ao mesmo
tempo, como salvação.
As imagens de gado
sendo sacrificado para
impedir a transmissão da
febre aftosa, o medo do
mal da vaca louca e a desconfiança com a manipulação genética de alimentos estão na ordem
do dia, provocando insegurança nas pessoas.
Ao mesmo tempo, a indústria da saúde passa
pela maior bonança: leite
que protege o coração,
milk-shake que substitui
refeições, bolachas doces
turbinadas com vitaminas, a lista dos produtos à
venda não tem fim.
Os desenvolvimentos tecnológicos hoje vistos com desconfiança
são os que permitiram que os alimentos estivessem à disposição
de um maior número de pessoas.
A Revolução Verde, iniciada
nos anos 60, aumentou a oferta e
derrubou o preço de alimentos
por meio do uso intensivo de espécies melhoradas de plantas e
defensivos agrícolas (como os
agrotóxicos).
A ampliação do uso de aditivos
químicos como os conservantes
permitiu que alimentos percorressem grandes distâncias. A pecuária intensiva, com o confinamento dos animais e o uso de ração, produz o mesmo efeito.
Pouco a pouco, a alimentação se
torna mais e mais industrializada,
e os alimentos que chegam à mesa
são cada vez menos parecidos
com a sua versão inicial. O rótulo
de uma bebida gasosa feita com
base na semente do guaraná tem,
além desse extrato natural, corante, edulcorante, acidulante
-uma infinidade de substâncias
de origem desconhecida.
Comida "engenheirada"
Esse estranhamento e essa desconfiança quanto ao conteúdo estão no cerne da questão dos alimentos transgênicos, que são o
ápice da transformação do alimento. Melhoramento de espécie,
quando são cruzados certos espécimes para obter uma linhagem
superior -garanhões reprodutores, por exemplo-, não é novo.
A diferença da engenharia genética é que são "importados" certos
atributos de outras espécies,
criando, no caso dos alimentos, o
que os contrários à técnica chamam de "comidas Frankenstein".
Essa manipulação nos genes
dos organismos, isto é, no conjunto de instruções que os fazem
ser o que são, em geral, é feita por
dois motivos: para aumentar o
valor bioquímico do alimento
-acrescentando nutrientes que
antes não estavam presentes, por
exemplo- ou para eliminar o
uso de agrotóxicos -adicionando toxinas que matam os predadores (veja quadro nesta página).
A modificação genética é defendida e atacada com igual ferocidade. Opositores basicamente afirmam que a técnica ainda não é conhecida o suficiente para ser aplicada em larga escala (apesar de já
o ser em países como os EUA) e
para consumo humano (o que
também já acontece, como mostram testes feitos pelo Instituto de
Defesa do Consumidor).
Defensores afirmam que a técnica é segura, que proporciona
maior rendimento por área plantada e menos uso de agrotóxicos.
Os mais empolgados propõem a
transgenia como solução para o
problema da fome no mundo.
Descrença na tecnologia
O medo da manipulação genética é apenas o mais recente dos temores associados aos alimentos,
que já há algum tempo são vistos
com cautela. Desde os anos 80
existe o medo do leite radioativo,
por causa da explosão da usina
atômica de Tchernobil, os surtos
de comida contaminada por salmonela e os sucessivos temores
de que manteiga, aspartame etc.
seriam cancerígenos, entre outros
episódios.
Esse medo indica uma descrença na idéia de que a tecnologia, isto é, a interferência humana na
natureza, seja capaz de produzir
resultados benéficos.
A reação a isso é uma nostalgia
das origens, o desejo de voltar ao
passado natural, "puro". As seções de frutas, verduras e "produtos naturais" ocupam cada vez
mais espaço nos supermercados.
A agricultura orgânica é um
exemplo dessa tentativa de "retorno ao natural". Nela são usados pesticidas e fertilizantes naturais, com o intuito de produzir alimentos mais saudáveis e de forma
menos nociva para o ambiente.
Uma pesquisa no Reino Unido,
divulgada no mês passado pela
rede BBC, apontou que 82% dos
consumidores querem uma volta
à agricultura tradicional, mesmo
que isso signifique pagar mais.
Mas é apenas uma elite mundial
que pode se dar a esse luxo, com
uma agricultura ainda não desenvolvida em larga escala.
Comida-remédio
Uma estranha mistura do natural com o tecnológico é o uso medicinal dos alimentos. Há muito já
se sabe que muitos deles têm propriedades terapêuticas. A diferença dos nutracêuticos -neologismo a partir de (alimento) nutritivo e farmacêutico- é que os alimentos ou suas partes que contêm esse potencial são extraídos,
condensados e comercializados
em forma de cápsulas ou pílulas.
O mercado dos nutracêuticos já
movimenta US$ 15 bilhões, mas
escapa de regulamentação e, em
geral, não há comprovação científica de seus supostos efeitos benéficos sobre a saúde.
"É uma crença ingênua de que a
saúde vem pela boca. A nutrição é
apenas um dos elementos para
uma boa saúde", diz Fernando
Lefèvre, da Faculdade de Saúde
Pública da USP.
Por um lado, comer virou ato
técnico, em que alimentos são escolhidos pelas propriedades bioquímicas -quantidade de calorias, proteínas-, não pelo gosto.
Por outro, como explicar a incrível diversidade de restaurantes,
oferecendo as culinárias mais longínquas, a facilidade com que se
compra a mesma fruta em todas
as estações e até os índices alarmantes de crianças obesas?
Que se trata de uma revolução,
não resta dúvida. E a transformação do alimento apresenta esses
dois lados, com consequências
ainda desconhecidas.
Portanto é difícil precisar sua dimensão na vida moderna. O correto, em contraponto ao verbete
"alimento" do começo da reportagem, seria acrescentar as seguintes definições:
4. Substâncias que nutrem, sustentam a saúde e, portanto, a vida.
5. Fruto da biodiversidade da
Terra, disponível em inúmeros tipos e formatos.
6. Essencial em confraternizações, é responsável por um dos
maiores prazeres do ser humano.
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