São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001


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Antropólogo indiano Shiv Visvanathan diz que devemos recuperar a idéia de comida como dádiva

Pensador quer ciência da festividade

DA REDAÇÃO

O antropólogo e historiador da ciência Shiv Visvanathan, 51, é outra voz dissonante que vem da Índia. Com uma linguagem poética que destoa do tom acadêmico típico das universidades que o convidam para dar palestras, como a de Harvard, o professor do Centro de Estudos sobre Sociedades em Desenvolvimento (Nova Déli) diz que "cozinhar se transformou em uma série de regras de segurança" e pede uma ciência fora da "política do medo" que domina os debates atuais.
Leia a seguir a entrevista que Visvanathan concedeu à Folha, por telefone, de Brighton (Reino Unido). (MB)

Folha - O medo de comer tem relação com uma desnaturalização da comida?
Shiv Visvanathan -
É mais do que isso: é uma falta de fé na natureza. Na agricultura tradicional, há uma reciprocidade na relação com a natureza. A comida é vista como uma dádiva, e o agricultor é apenas um depositário dessa dádiva. Quando se introduz a noção do artificial, não é apenas a comida que muda, mas também a natureza da hospitalidade e da cultura que concebe essa comida.

Folha - Isso afeta o ritual de comer?
Visvanathan -
A artificialidade está destruindo a idéia de semente, de comida e de dádiva. Assim, destrói um padrão de civilização: a idéia de "cuisine". Se os transgênicos fazem alguma coisa, é expressar o que a mídia diz sobre o que devemos ou não comer. Cozinhar se transformou em uma série de regras de segurança, uma atividade que exige tão pouca habilidade quanto dirigir um automóvel -em qualquer sociedade tradicional, é uma questão de confiança e hospitalidade. A comida transgênica não é uma comida em nenhum sentido tradicional do termo.

Folha - Então, sobre o que deveríamos falar quando falamos de comida?
Visvanathan -
Deveríamos falar sobre dádiva, sobre cosmologia. Se a Índia tem 50 mil tipos de arroz, talvez tenha 50 mil formas de sonhar e 50 mil formas de cozinhar. Muitos desses tipos de arroz são cultivados para ocasiões especiais: cozinha-se um tipo de arroz para casamentos, outro para festivais, outro porque tem um cheiro ou um gosto particular. Há estética, cosmologia, religião e gosto envolvidos. Quando olho para um hambúrger, não vejo tudo isso.

Folha - Devemos repensar o modelo de produção de comida?
Visvanathan -
Sim. Há um desafio para a ciência, no sentido de aumentar a produtividade. Mas esse desafio tem de ser pensado em termos de como ser funcional dentro de certas diretrizes civilizacionais. O que comemos muda a definição de comer.

Folha - Intelectuais do Terceiro Mundo podem dar uma contribuição especial a esse debate?
Visvanathan -
Sim: a de entender a noção de comida como dádiva, para recuperarmos a noção de natureza e de como reinserir a ciência em certas noções de cosmologia civilizacional. Mas não se pode esquecer que os maiores defensores dos transgênicos são cientistas do Terceiro Mundo. Cientistas indianos estão sempre repetindo que a biotecnologia pode nos transformar em uma superpotência.
Mas não estudamos os impactos de muitas dessas comidas, não fizemos a análise de custo social a longo prazo e não acho que tenhamos entendido qual é a relação da semente com o agricultor. Quando a multinacional fornece a semente, a noção de semente na civilização muda totalmente.
Muitos de nossos agricultores tribais plantam pelo menos 20 tipos de semente em cada ciclo. Acho que eles têm uma noção diferente de segurança, relacionada à natureza -diferente da do homem que planta transgênicos. A Monsanto diria que quer controlar toda a cadeia alimentar, mas nenhum agricultor do Terceiro Mundo teria essa pretensão.

Folha - Como o sr. vê o futuro do debate sobre a comida?
Visvanathan -
Sempre fico surpreso que os debates sejam construídos sobre o medo ou a escassez. Toda a economia é construída em torno da escassez, e a biotecnologia moderna parece ser construída em torno do medo ou da riqueza. Não vejo ninguém construindo nada em torno da festividade ou do jejum -e jejum não é anorexia, mas uma forma diferente de perceber os ritmos do corpo.
O maior problema é o fato de que a comida perdeu seu sentido de multiplicidade temporal, ou seja, saber quando se deve comer o quê -e isso não tem nada a ver com economia. Temos de libertar a economia dos economistas e dos marketeiros, para recuperar o sentido da prudência.
Deveríamos construir uma ciência em torno da festividade ou do jejum, fora da política do medo. Isso não significa ignorar a biotecnologia: ela é ótima se pensarmos que é uma extensão da fermentação. Se podemos celebrar o pão e o vinho e perceber que são frutos da biotecnologia, por que não resgatar essa idéia de comida?




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