Livraria da Folha

 
02/11/2010 - 18h13

"Anarquistas, Graças a Deus" relembra memórias políticas de Zélia Gattai

da Livraria da Folha

Divulgação
Memórias resgatam construção da cidade de São Paulo
Memórias resgatam construção da cidade de São Paulo

"Anarquistas, Graças a Deus", primeiro livro de Zélia Gattai, lançado inicialmente em 1979, resgata a construção de São Paulo pelas memórias da escritora.

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A cidade passava pelo processo de modernização, (a avenida Paulista nem era asfaltada ainda, imagine) e o leitor acompanha as discussões da vizinhança, as passeatas políticas e os desentendimentos que ergueram os berros do anarquismo dentro e fora de sua casa.

O conceito da anarquia, grosso modo, é o princípio do "sem governo", da ideia individualista e que rompe com quaisquer tipos de autoridades, sejam religiosas, privadas ou sociais. No Brasil, a ideologia está diretamente ligada aos imigrantes europeus (como os pais de Zélia), que também são associados às primeiras manifestações sindicalistas e operárias.

Na época, moradora de uma casa localizada no entorno da avenida Paulista, na alameda Santos, número 8, Zélia relembra fatos e manias da família, recém chegada de Florença, na Itália, e a convicção política, os fundamentos, a maneira de lidar com o capital. A estrutura anárquica que domina sua casa, porém, também é relembrada em outros contextos, como nas fofocas com a babá.

Folha Imagem
Zélia Gattai (1916-2008)
Gattai (1916-2008)

As aventuras da família italiana na cidade ganham registros nas páginas que ora tomam tom de crônica, ora lembram contos e que compõem no fim um incrível romance memorialista.

A autora foi casada com o também escritor Jorge Amado (1912-2001). Comunista assumido, foi referência e recebeu elogios de intelectuais como o nobel Vargas Llosa e Pablo Neruda (1904-1973).

Em 2001, Zélia Gattai foi eleita para a Academia Brasileira de Letras.

Leia trecho.

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ALAMEDA SANTOS NÚMERO 8

Num casarão antigo, situado na alameda Santos número 8, nasci, cresci e passei parte de minha adolescência. Ernesto Gattai, meu pai, alugara a casa por volta de 1910, casa espaçosa, porém desprovida de conforto. Teve muita sorte de encontrá-la, era exatamente o que procurava: residência ampla para a família em crescimento e, o mais importante, o fundamental, o que sobretudo lhe convinha era o enorme barracão ao lado, uma velha cocheira, ligada à casa, com entrada para duas ruas: alameda Santos e rua da Consolação.

Ali instalaria sua primeira oficina mecânica. Impossível melhor localização! Para quem vem do centro da cidade, a alameda Santos é a primeira rua paralela à avenida Paulista, onde residiam, na época, os ricaços, os graúdos, na maioria novos-ricos. Da praça Olavo Bilac até o largo do Paraíso, era aquele desparrame de ostentação! Palacetes rodeados de parques e jardins, construídos, em geral, de acordo com a nacionalidade do proprietário: os de estilo mourisco, em sua maioria, pertenciam a árabes, claro! Os de varandas de altas colunas, que imitavam os palazzos romanos antigos, denunciavam - logicamente - moradores italianos. Não era, pois, difícil, pela fachada da casa, identificar a nacionalidade do dono.

O proprietário do imóvel que meu pai alugou era um velho italiano, do sul da Itália, Rocco Andretta, conhecido por seu Roque e ainda, para os mais íntimos, por tzi Ró (tio Roque). Dono de uma frota de carroças e burros para transportes em geral, fora intimado pela prefeitura a retirar seus animais dali; aquele bairro tornava-se elegante, já não comportava cocheiras e moscas. O velho Rocco fizera imposições ao candidato: reforma e limpeza do barracão, pinturas e consertos da casa por conta do inquilino.

Dona Angelina, minha mãe, assustou-se: gastariam muito dinheiro, um verdadeiro absurdo! Onde já se vira uma coisa daquelas? Velho explorador! Por que o marido não comprava um terreno em vez de gastar as magras economias em reformas de casa alheia? E o aluguel? Uma exorbitância! Como arranjar tanto dinheiro todos os meses? Onde? Como? Mas ela sabia que não adiantava discutir com o marido. Considerava-o teimoso e atrevido.

O vocabulário de dona Angelina era reduzido - tanto em português como em italiano, sua língua natal -, não sabia expressar-se corretamente; por isso deixava de empregar, muitas vezes, a palavra justa, adequada para cada situação. Usava o termo "atrevimento" para tudo: coragem, audácia, heroísmo, destemor, obstinação, irresponsabilidade e atrevimento mesmo. Somente conhecendo-a bem se poderia interpretar seu pensamento, saber de sua intenção, se elogiava ou ofendia. No caso da reforma em casa alheia, não havia a menor dúvida, ela queria mesmo desabafar, chamar o marido de irresponsável: "Um atrevido é o que ele é!", disse e repetiu.

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"Anarquistas, Graças a Deus"
Autora: Zélia Gattai
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 344
Quanto: R$ 31,60 (preço promocional, por tempo limitado)
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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