Publifolha
13/06/2008 - 10h15

Sociólogo mostra como a magia faz parte de nosso cotidiano; leia capítulo

da Folha Online

Normalmente associada a "povos primitivos", a magia está presente no nosso cotidiano. Mostrar como este tipo "de coisa" aparece nos em pequenos detalhes do cotidiano e está presente em nossas crenças é o objetivo de "A Magia", volume da coleção "Folha Explica" da "Publifolha" cujo primeiro capítulo pode ser lido abaixo.

Divulgação
Sociólogo apresenta visão antropológica sobre o uso da magia
Sociólogo apresenta visão antropológica sobre o uso da magia

A obra trata de vários tipos de magia, --da magia espontânea, como bater na madeira, às terapias da nova era, como, por exemplo, os florais de Bach.

O sociólogo Flávio Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da USP e editor da revista "Novos Estudos Cebrap", apresenta no livro as "leis da magia" na visão de autores fundamentais nesse estudo, como Frazer, Henri Hubert, Marcel Mauss, Durkheim, Malinowski, Goode e Edmund Leach.

- Leia resenha "Pierucci dosa teoria e prática em 'enciclopédia de bolso'", por Luiz Mott, publicada à época do lançamento do livro

Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.

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YO NO CREO, PERO...

Isola!", falou, e foi batendo três vezes na madeira.

Eis um breve ritual de magia, muito difundido em todas as camadas da população brasileira. Rápido, lépido: três toques na madeira com os nós dos dedos da mão direita fechada, enquanto se pronuncia o signo lingüístico adequado "Isola!", fórmula mágica em tempo de interjeição.1

A onipresença dos gestos de magia espontânea em nossa época, as formas modernas de difusão na mídia e o consumo regular da consulta aos astros (o horóscopo diário e o mapa astral informatizado), sem falar da nova onda de profissionalização de magos e bruxas no bojo dos circuitos globalizados de terapias alternativas estilo Nova Era, definitivamente nos proíbem de continuar associando a crença na magia e sua prática aos povos primitivos, às épocas arcaicas e às camadas mais baixas da população. Convém, portanto, iniciar este livro falando das três atitudes básicas que os nossos contemporâneos podem tomar a respeito da existência ou não de poderes mágicos: a crença, o ceticismo e a semicrença.

A crença mágica reside na suposição de que alguns seres humanos são capazes de controlar forças ocultas (pessoais ou impessoais) e intervir nas leis da natureza por intermédio de técnicas rituais. Trata-se de um poder extraordinário --um carisma, no sentido forte do termo-- que, segundo se crê, capacita quem é mago, bruxo, feiticeiro ou xamã a impor sua vontade às forças supra-sensíveis (tanto faz se divinas ou demoníacas) e direcioná-las para a concretização dos objetivos para os quais é solicitada sua competente performance profissional: predizer o destino de alguém, curar uma doença, defender dos invejosos, atacar os inimigos.

Nas sociedades tribais e em outras formas de sociedade tradicional de pequena escala, a crença na magia envolve a coletividade inteira, sendo justamente a fé coletiva o que assevera a eficácia dos ritos da magia primitiva, sua eficácia simbólica.2

Diferentemente do que ocorre naquelas sociedades, o que se observa em todos os casos de magia ou feitiçaria registrados pelos estudos antropológicos e históricos das sociedades modernas ou em vias de modernização é apenas um círculo estreito de pessoas que não têm vergonha de confessar sua crença e adesão ao magismo. Um grupo social de referência, que partilha com a pessoa que se diz enfeitiçada a crença na causalidade mágica e no poder especial dos feiticeiros. Em geral, pessoas próximas: gente da família, uma roda afetiva de amigos, vizinhos, sócios, colegas de trabalho, correligionários de clube esportivo, partido político ou comunidade religiosa, pessoas enfim que conhecem de perto o enfeitiçado e talvez saibam da fama do feiticeiro, dividindo com ambos os personagens as mesmas conjecturas e apreensões. Têm na mesma mentalidade mágica o seu quinhão e o fazem vicejar no contexto restrito dos dramas relacionais e antagonismos locais.3 São indivíduos que admitem sem pestanejar a existência de elementos "sobrenaturais" para explicar de maneira tangível o fas e o nefas, as ocorrências boas e as nefastas, sem causa racionalmente conhecida ou determinada.

É gente que acredita mesmo em feitiço. Dada essa condição, que abriga uma disposição, eles fazem de si mesmos clientes preferenciais dos magos profissionais ou, quem sabe, feiticeiros ocasionais eles próprios, praticantes eventuais da magia espontânea. Dessa que se aprende no boca-a-boca ou, com mais detalhes, nos inúmeros livros e receituários vendidos em lojas de umbanda ou nas seções de esoterismo das boas livrarias.4

E há os céticos. Em oposição direta à crença explícita nos feiticeiros e sua magia, está o ceticismo daqueles indivíduos que, tendo adotado o espírito da moderna racionalidade científica, recusam toda interpretação mágica da desgraça ou da felicidade. Desse ponto de vista, a crença na magia é desvalorizada como credulidade ou crendice, julgada debochadamente como ingenuidade, ignorância, atraso mental. Falta de instrução ou, no mínimo, falta de critério.5 Para os céticos, acreditar em magia ou feitiçaria é não apenas ser mas também parecer primitivo, estúpido, infantil.

A atitude mais generalizada, porém, é a da meia crença. A expressão já está consagrada entre os cientistas sociais anglófonos --half-belief.6 Tendo de um lado o grupo dos que acreditam e do outro o bloco dos céticos, a posição majoritária nos tempos atuais é a dos semicrentes. São indivíduos que "acreditam sem acreditar", ou "desacreditam acreditando". Impossível não lembrar, a propósito, o citadíssimo adágio espanhol que diz: Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay ("Não acredito em bruxas, mas que existem, existem").

Essa é apenas uma das muitas atitudes lúdicas (ou nem tão lúdicas assim) que, para além de toda crença firme e incondicional, confessável sem rodeios ou meias palavras, denotam a influência que sobre corações e mentes exerce ainda hoje a magia, "essa grande senhora extraordinariamente bela", no dizer de André Breton, o grande teórico do surrealismo.7 Semicrença é o que se vê naquele "Eu sou de Escorpião", "Eu sou de Aquário", dito em tom irônico, duvidoso. É a "crença crítica ou, enfim, pseudocrítica", escreveu Philippe Defrance, referindo-se à astrologia.8 É a atitude de alguém que, dada a impossibilidade que experimenta de ser "racional", cede à contingência de ser apenas "razoável". É a atitude daquele sujeito que, moderno, aceita reconhecer todas as insuficiências da explicação mágica dos fatos, mas também, pós-moderno, se recusa a pôr fundamentalmente em questão a realidade bruta e a um só tempo nebulosa das interferências místicas e ocorrências encantadas que arrastam a imaginação humana

Que las hay, las hay.

Semicrença é assim: constante oscilação, dança sem repouso. Parte da descrença desses indivíduos vem de sua adesão ao valor estratégico do conhecimento científico, do reconhecimento do legítimo lugar de dominância cultural ocupado pela ciência moderna e pelo espírito crítico, marcadores básicos da modernidade. Com toda a boa vontade cultural de que são capazes, tentam integrar-se plenamente à mentalidade dominante, mas suas próprias experiências e vivências os fazem desconfiar de toda essa racionalidade do moderno, que se pretende total e que, no entanto, parece não dar conta de tudo o que acontece na vida.

Quando cruzamos os dedos em favor do time do coração na hora do pênalti, ou quando com a mão no bolso fazemos figa para nos defender do mau agouro de um colega, da inveja de um vizinho, da praga rogada por um concorrente, estamos de fato acreditando que essas magias dão certo? E o que dizer do jogador que de longe tenta impelir a bola na direção pretendida e a acompanha com sua mímica depois de ter dado o chute? Muitos brasileiros fazem isso. Muitos ingleses também. E franceses.9 E italianos, argentinos e outros. Quantos acreditam? E atirar sal por cima do ombro sem olhar para trás para secar verrugas? E colocar vassoura atrás da porta a fim de botar fora a visita inoportuna? Quantos dos próprios indivíduos engajados nesses rituais mágicos banalizados crêem que eles "funcionam", que de fato dão resultado?

Na sociedade contemporânea, dos países mais pobres aos economicamente mais avançados, são inúmeras as pessoas que praticam atos supersticiosos mas declaram não crer que possa dar certo o emprego dessas fórmulas mágicas, orais e gestuais. Praticam-se compulsivamente atos de magia trivial, sem acreditar-se inteiramente neles. Práticas irracionais? Não necessariamente.10 O filósofo francês Henri Bergson chamou certa vez a atenção para a grande semelhança que há entre o gesto do homem que, de raiva, aperta os dedos como se estrangulasse de longe um inimigo e a prática da feitiçaria de ataque, a magia negra. Para Bergson, em ambos os atos está presente o sentimento verdadeiramente mágico de que, uma vez executados certos gestos simbólicos, as coisas ficam carregadas de uma força que obedece aos desejos do ser humano.11 De um ponto de vista muito mais crítico, e sem a devida ênfase na eficácia ritual, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, foi encontrar sua definição de magia na "onipotência do desejo".12

1 - Há países em que se bate no ferro, não na madeira.
2 - Lévi-Strauss, 1958; Mauss, 1974; Montero, 1990. Para economizar espaço nas notas, adotamos esse sistema abreviado de referência. Todas as obras mencionadas constam da Bibliografia, ao final do livro.
3 - Camus, 1988.
4 - Ver três bons exemplos na Bibliografia: Farelli, 1999; Rajahn, 1999; e o mais completo de todos, Rezas, Benzeduras, Simpatias (São Paulo: Editora Três, s.d.).
5 - O engraçado é que esse mesmo tipo de crítica pode ser encontrado na boca de muitos não-céticos, a saber: padres, pastores, rabinos e outras lideranças religiosas doutrinárias, que por profissão admitem a crença na religião, mas não a crença na magia. Durante os primeiros séculos do cristianismo, a Igreja ocidental oficial, bem antes de ter dado início à caça às bruxas na baixa Idade Média, proibia que se acreditasse na existência de magia e bruxaria (Castiglioni, 1993). Depois mudou de teoria e partiu para o ataque mortal aos feiticeiros e feiticeiras, devidamente assimilados aos espíritos diabólicos, queimando-os nas fogueiras da Inquisição.
6 - Ver Campbell, 1996.
7 - Apud Morin, 1972.
8 - Defrance, 1972.
9 - Campbell, 1996; Boy & Michelat, 1986.
10 - Beattie, 1970; Bourdieu, 1980; Jarvie & Agassi, 1987; Sperber, 1982.
11 - Bergson, 1932.
12 - Freud, 1924.

"Folha Explica - A Magia"
Autor: Antônio Flávio Pierucci
Editora: Publifolha
Páginas: 120
Quanto: R$ 18,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

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