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Educação
24/06/2005

Íntegra de entrevista: Gustavo Ioschpe

Quais são os principais problemas da escola pública?

Quantas horas você tem? O principal problema obviamente é de alfabetização, de primeira série do ensino fundamental. Hoje a gente tem um índice de repetência na primeira série de 33%, isto é, de cada três crianças que entram na primeira série uma repete. Isto é altíssimo, muitíssimo acima da média internacional. A repetência é o sintoma, não é a causa. O que isso faz é gerar um ensino de alfabetização muito ruim, que faz com que as crianças não tenham condições de ter uma alfabetização minimamente funcional. Então, elas acabam tendo uma fundação muito ruim para toda vida educacional delas. Acabam tendo dificuldades, repetindo de ano e saindo da escola. A raiz do problema está já no primeiro ano, nos primeiros anos. Para mim, a prioridade zero é criar um esforço nacional de qualidade da alfabetização já na primeira série, diminuir drasticamente esse índice de repetência e melhorar a qualidade da primeira série como um todo para que não só diminua a repetição na primeira série, mas que a criança saia dela com uma base boa e possa aprender história, geografia, porque ela precisa ler e escrever para poder aprender, inclusive matemática. Às vezes, a gente vê provas de matemática que você nota que não é que criança não saiba a matéria, ela não consegue expressar a resposta. A pergunta é o que causa esse problema. Por que a alfabetização brasileira e o ensino fundamental brasileiro está tão ruim? Há uma série de questões pontuais. Eu acho que tem umas 70 mil escolas que não tem diretor, que é uma coisa muita básica, tem dezenas de milhares de escolas que não têm as mínimas condições de infra-estrutura. Isso são todas coisas fáceis de resolver. A grande maioria das escolas não tem água encanada, milhares de escolas não têm banheiro. É uma infra-estrutura física que é muito barata de consertar e que todas as pesquisas mostram que têm um impacto muito forte. Outra coisa importante é o livro didático. O que acontece no Brasil é algo ilustrativo de por que a coisa está errada. O Brasil criou um dos maiores, se não é o maior programa do mundo, de distribuição de livro didático. Esse programa tem uma câmara em Brasília, que contrata especialistas e que gera um guia. Esse guia do Plano Nacional do Livro Didático avalia todos os livros, dizendo se o livro é recomendado com distinção, recomendado e recomendado com ressalva. Quer dizer, há toda infra-estrutura para entregar o livro, tem toda infra-estrutura para julgar o livro, só que a maioria dos livros comprados são dos "recomendados" ou "recomendados com ressalvas". Não adianta ter um programa com todo esse salamaleque, mas que, quando chega na ponta, as escolas continuam recebendo livros ruins. Se você me perguntar por que os secretários de educação compram esses livros de má qualidade quando eles têm livros de boa qualidade disponíveis, eu não sei, é uma questão a ser investigada. É um problema sério. E há o fundamental, que é treinamento e qualificação de professores. Todos os censos educacionais e testes de professores mostram que a qualidade e o domínio da matéria é baixíssimo. Em muitos casos, não estatisticamente diferente do conhecimento dos próprios alunos, especialmente nas regiões mais pobres do país. Obviamente, essa é uma pessoa que não vai conseguir educar. Há também um falta de prioridade em relação a esse problema de alfabetização. A impressão que passa é que a primeira série é aquilo que ninguém quer, o refugo. O professor mais novo, inexperiente, que não pode escolher onde e em que série trabalhar é colocado na primeira série, já os professores melhores, com mais experiência acabam sendo "promovidos" para séries mais a frente. Você acaba colocando as menos preparadas para a área mais crítica que é justamente no começo do processo de alfabetização. Essas são as variáveis que eu acho importante, mas eu também quero dizer as variáveis que eu não acho importantes e que são comumente citadas por quase todo mundo que fala sobre educação. A primeira é salário de professores. Tem essa discussão que o problema é o salário dos professores, que de enquanto ele for o que é não vai se conseguir um ensino de qualidade. A grande maioria da literatura, tanto internacional para país desenvolvido quanto para subdesenvolvido como para o próprio Brasil, não mostra uma relação positiva, estatisticamente significativa entre salário de professor e melhoria da performance de aluno. A própria experiência brasileira confirma isso na prática quando você olha para o Fundef. O Fundef é um programa de financiamento muito grande do ensino fundamental, que destina 60% dos recursos para salário de professor, teve um aumento salarial muito significativo, em alguns lugares da ordem de 50% do valor e a qualidade não melhorou. Quando você pega o resultado do Saeb desde sempre, mas também desde a implantação do Fundef, ele continua caindo. Não é que ele não melhorou muito, ele piora. Para mim, tem todas as evidências que não se resolve os problemas da educação apenas com salário de professores. Se a pessoa não tem o treinamento, o conhecimento, a capacidade, não adianta pagar 20 vezes mais que ela não vai conseguir ensinar. É um conhecimento específico, muito detalhado, que exige anos de estudo e na ausência desse conhecimento você não consegue ter um processo de educação bom. É por isso que eu venho defendendo a criação da Lei de Responsabilidade Educacional, que é mudar todo esse sistema de financiamento da educação brasileira, que hoje é feita por um critério de necessidade: quanto mais pobre é a cidade ou Estado mais dinheiro ele recebe de transferência de recursos. A proposta é adotar um critério de mérito. À medida que a educação melhora, o secretário municipal, estadual recebe mais recursos. Você tem que premiar resultado, não adianta premiar necessidade. Se não, você dá um incentivo para as prefeituras e para os Estados para que invistam menos ainda em educação, porque quanto menos eles investem mais dinheiro recebem.

O ex-ministro Cristovam Buarque também defende algo parecido, mas com aspecto punitivo para quem não cumprisse determinadas metas, como se fosse a Lei de Responsabilidade Fiscal. Você também defende dessa maneira?

A versão que eu conheço da lei que o Cristovam propõe é um pouco diferente porque, pelo que eu entendi, era uma lei que visava garantir um investimento mínimo universal. Quando eu ouvi a formulação dele, não tinha nenhuma contrapartida, nenhuma exigência em termos de resultado. Para mim, o foco principal não é garantir um nível mínimo de recursos, o principal é você premiar resultado, melhora. À medida que a cidade melhora seus índices de repetência, de performance no Saeb, enfim, de qualidade na educação, ela recebe mais recursos. No momento em que ela não melhora ou que ela retrocede, ela não recebe dinheiro. Não é uma punição no sentido de colocar a pessoa na cadeia, até porque acho que isso não funciona. O negócio é você entender como é que funciona o sistema político de quem está gerindo essa educação. É um sistema que funciona com um cara que está atrás de votos, a moeda de troca do sistema político é voto. Então, você precisa fazer alguma coisa que tire votos da pessoa quando ela faz algo que é não é bom para o país e que dê votos quando ela faz alguma coisa que é boa para o país. Quando a pessoa faz alguma coisa boa, ela deve receber mais dinheiro e o trabalho deve ser divulgado. Que o ministério da Educação faça uma lista pública dos melhores gestores, mas sem critério subjetivo. Defina-se antes o que se quer alcançar, que para mim é muito claro: melhoria no Saeb e diminuição de taxa de repetência. Você vai ter uma lista pública que toda sociedade vai poder olhar e dizer se o seu governador vai ou não vai receber dinheiro, se fez ou não um bom trabalho. Caso o político seja eficaz, isso aumenta o capital político dele, aumenta as possibilidades de reeleição. Esse é um tipo de mecanismo melhor do que multa, inelegibilidade ou colocar na prisão. Recompensa o governante que fez um trabalho bom e faz com que ele só seja recompensado quando efetivamente melhorar o resultado. Esse é um erro cabal que eu acho do Fundef, ele premia meios e não fins. Não importa quantos por cento vai para salário, construção e educação. Isso não deveria interessar, o que interessa é o resultado, e o resultado é a qualidade do ensino. Tem que dar liberdade para o gestor colocar o dinheiro onde ele quiser. A lei diz o que tem que fazer, qual deve ser o foco, mas tem 5.500 municípios no Brasil, cada um tem prioridades diferentes, tem problemas diferentes. Ele tem que ter uma responsabilidade de mostrar resultado, como ele vai alcançar esse resultado pouco nos interessa. Hoje, o Fundef determina que 60% dos recursos sejam destinados para salário de professor e o resto tem que ser só no ensino fundamental, e a gente sabe que tem prefeituras que desviam esses recursos, usam em outras coisas que não têm impacto nenhum em educação e não são punidos por isso.

O montante de recursos colocados na educação é suficiente?

Eu acho que a gente tem que desmembrar a coisa em duas partes. Primeiro, o montante de recursos públicos e privados investidos na educação no Brasil é mais do que suficiente. Isso fica muito aparente quando você compara com gastos internacionais. A discussão de que não tem dinheiro, que o governo não prioriza educação, que o Brasil não dá prioridade devida à educação e que com esse montante de recursos é impossível é outra falácia da educação no Brasil. Isso não é verdade, hoje o Brasil, no agregado, investe basicamente o mesmo valor que os países de primeiro mundo. O programa do gasto brasileiro é que ele é muitíssimo mal distribuído: vai muito para o ensino universitário público e pouquíssimo para o ensino básico. Não é um problema de captar mais recursos para a educação brasileira, é de distribuir melhor.

Você teria algumas idéias de captar mais recursos: cobrar os alunos de universidade pública e acabar com a dedução no imposto de renda.

Essas são duas medidas que deveriam ser utilizadas para acomodar os novos entrantes na educação brasileira. Quando você tiver um modelo de educação fundamental razoável, em que as pessoas não saiam tanto da escola, não haja a evasão que existe hoje, você terá um crescimento muito forte. Essas medidas não são necessariamente para atender quem está hoje no ensino escolar. Hoje, nós temos um ensino médio com nove milhões de crianças e esse poderá dobrar se nós chegarmos ao nível de matrícula dos países desenvolvidos, e aí você terá que construir novas escolas, tem um gasto maior. Em primeiro lugar, esses recursos são para equacionar esse crescimento. Em segundo lugar, o fundamental dessas propostas não é tanto de gerar recursos, porque o montante gerado não é tão grande em relação ao volume total da educação brasileira, mas é de corrigir distorções que são muito sérias: filhos de pessoas ricas estarem em universidades gratuitas, com o Estado pagando as contas deles. Cobrando mensalidades dessas pessoas você vai forçar a universidade pública a rearranjar sua estrutura de gastos, para que ofereça um custo condizente com os valores da média. O fim da isenção da dedução de imposto de renda para gastos com educação tem também um impacto monetário, mas a razão principal é que no sistema do ensino básico há também uma distorção e um privilégio de classe que é inaceitável, que é oferecer escola privada para os filhos dos ricos subsidiado pelo Estado. Que eu saiba não há nenhum país que utilize um mecanismo assim, há vários países onde o governo subsidia a escola privada abertamente, onde o governo cria que serão administradas pelo setor privado, mas não dessa maneira sub-reptícia, escondida. Existe um pesquisador da Universidade de Brasília que diz que, no Brasil, todo mundo tem escola pública, só que alguns têm pública de má qualidade, que são as escolas públicas, e outros têm pública de boa qualidade, que são as privadas, mas que são bancadas pelo Estado através dessa dedução do imposto. Isso tem que acabar por uma questão ética e também porque hoje há distribuição não-natural e não-espontânea das classes no sistema educacional. A educação pública virou, praticamente, só da classe média para baixo, enquanto a classe média para cima se concentra nas escolas privadas. O que isso causou na educação brasileira? Ele tirou da escola pública o grande ator com força política para demandar melhorias na qualidade da educação. Quem reclama, quem reivindica qualidade no serviço público no Brasil e em quase todas partes do mundo são as classes média para cima, as classes mais instruídas e que têm maior poder econômico. Hoje, essa classe está totalmente ausente do sistema de educação pública, isso causa a deterioração da escola pública que a gente está vendo. Eu acho importante trazer essas pessoas que, hoje, colocam seus filhos na escola privada e que não teriam condições de colocar nas escolas privada não fosse o subsídio governamental de volta para a escola pública, porque eles vão voltar a exigir uma melhoria de qualidade da escola pública e vão colocar pressão no sistema para que a escola pública volte a ter a qualidade que já teve.

O ex-ministro Paulo Renato Souza diz que os resultados ruins do Saeb foram causados porque nós últimos anos houve uma rápida incorporação de camadas da população que não estavam na escola. Qual a sua opinião sobre a análise do ex-ministro?

Eu acho que não tem sustentação essa idéia. Se em algum se estudar isso e se notar, ok. Eu não conheço nenhuma sustentação, pelo contrário. Eu conduzi alguns estudos muito preliminares, usando só aumento de taxa de matrícula e performance no Saeb, fiz uma análise de regressão básica e o número que saia dali era que não havia uma relação estatisticamente significativa entre aumento de matrícula e diminuição de performance no Saeb. Eu não acredito nessa hipótese. Nós não partimos de 20% de taxa de matrícula para 100% de taxa de matrícula em dez anos, isto é, de um ensino totalmente elitista para um ensino totalmente popular. Não, era um ensino que já estava em 91, 92% de taxa de matrícula e que passou para 97, 98%. A adição é pequena. Nós teríamos que imaginar que esses 5% eram paupérrimos, maus elementos, alunos maus comportados. Você tem que imaginar alguma coisa que, para mim, é fora do esquadro. Esse pequeno percentual de alunos tem um tal efeito que consegue corromper e piorar a educação de todo sistema. Vários países que tiveram uma expansão semelhante e que passaram a acolher setores marginais, periféricos da sociedade não houve essa queda precipitada de qualidade. Eu não conheço nenhum exemplo no mundo onde haja uma relação documentada empiricamente de expansão de matrícula com piora radical de qualidade. Eu não compro essa teoria.

O Darcy Ribeiro disse, certa vez, que, pela sua produção, os professores ganhavam muito. A sua teoria é parecida?

Eu não acho que ganham muito, até porque é ofensivo dizer isso para pessoas que estão ganhando um salário absoluto relativamente baixo. Ao dizer que um professor ganha muito ou pouco, você tem que balizar essa questão, se não fica muito subjetivo. O balizamento que pode ser feito é comparar o salário dos professores com o salário de outras categorias profissionais, levando em conta o maior número de características em comum. E quando isso é feito, e isso já foi feito, levando em conta nível educacional, idade, sexo, enfim, todas características que você pode medir, o que transparece é que não há diferença de salário dos professores para os não-professores, eles ganham basicamente a mesma coisa. E, quando tu englobas nessa análise outros fatores além do salário (pensão, aposentadoria, estabilidade no emprego, férias), o que se nota é que os professores ganham proporcionalmente mais do que as outras categorias. Eu não acho muito importante essa questão de se é mais ou menos. Eu não tenho nenhum interesse, e acho que ninguém deveria ter, em antagonizar os professores, em dizer que eles são improdutivos, que ganham muito e não fazem nada. Mesmo porque são os professores que tem que conduzir o processo educacional brasileiro, a gente tem sempre que atrair os professores para essa luta e sempre reforçar a importância que o professor tem para a educação e para o Brasil. Não é dizer se ganha de mais ou de menos, mas dizer que salário não é o problema. O teu líder sindical está dizendo que o teu problema é o salário, tu ouves na imprensa que o problema é salário, mas não é esse o problema. O que tu ganhas é justo dadas as tuas condições objetivas de preparação, de idade etc. Com esse salário, tu tens que produzir resultados melhores e não esperar uma melhoria salarial para produzir aquilo que a sociedade espera porque ela, provavelmente, não vai vir. Tu já estás ganhando aquilo que é justo. Muitos professores dizem que com esse salário não dá, que com esse gasto na educação brasileira não dá, que com esse sistema neoliberal não dá. São 20 razões pela qual ele, de antemão, sabe que o trabalho não vai poder ser feito e que não vai poder oferecer uma educação de qualidade. Isso é que não dá! Existem os fatores para se dar um salto de qualidade, com esses recursos pode ser feito muito mais.

O que o senhor com o ex-ministro Cristovam Buarque, que acha que a federalização da educação básica é necessária?

Eu acho que não. O Brasil é um país muito grande, você tem uma estrutura de 5.500 municípios, 170 milhões de pessoas, 40 milhões de alunos na educação básica, é muito difícil controlar isso tudo de uma maneira centralizada. Eu não conheço nenhum país das dimensões do Brasil ou que tenha dimensões próximas que tenha um sistema centralizado. É muito difícil de administrar, é um sistema muito grande e heterogêneo. Há diferenças muito grandes entre o que precisa ser feito na educação gaúcha e na educação paraense. Eu acho que tem que ter uma estrutura descentralizada, mas com ente central federal que coordene de forma eficiente os incentivos para que as unidades autônomas desempenhem da forma que é ideal para o Brasil. Hoje isso não existe. O governo federal dá diretivas gerais, dá dinheiro e pronto. Não cobra nada, não exige nenhuma contrapartida, não estabelece nenhum critério de performance, esse é que é o problema. Eu acho que dá para ter a estrutura que se tem hoje desde que o governo diga "nós vamos te dar dinheiro se" e condicionar isso a melhoras de qualidade.

Você acha que seria benéfico ou necessário dividir o controle governamental, no caso federal, da educação básica do da universidade?

Às vezes, no Brasil, a gente tem esse idéia de que basta criar uma criar uma regulação para que o processo se resolva. Infelizmente, o processo é um pouco mais complicado do que isso. O problema da estrutura e da priorização da educação no Brasil é a diferença de classes, a desigualdade de renda e o protagonismo político que as diferentes classes têm. Onde é que estão os alunos da elites? No ensino básico, não estão nas públicas, e no ensino universitário, estão nas públicas. Dada essa estrutura, é natural que haja um maior interesse do governo em atender essas classes abastadas, porque são as classes que têm mais poder político. Então, no ensino público, elas têm mais foco na universidade pública. Na educação básica, elas têm menos foco. O que tem se fazer é acabar com essa distinção de escola pública básica ser para pobre e universidade pública ser para rico. A universidade pública tem que deixar de ser de rico e, se for de rico, que eles paguem. Muito mais difícil e talvez mais importante, que é o que eu venho tentando fazer, mas que é uma batalha duríssima, que é conscientizar a elite brasileira que, se não houver uma melhora fundamental na educação pública básica, o Brasil caminha para repetir essa estagnação que a gente já vê hoje, para uma acomodação permanente, o que vai gerar e já está gerando uma ruptura do tecido social, uma descoesão social. O Brasil não vai conseguir continuar a crescer como cresceu até a década de 80 se a gente tiver um establishment educacional, uma performance educacional e estatísticas educacionais como as que a gente tem hoje. O Brasil cresceu durante 70, 80 anos porque passou de uma economia agrícola para uma industrial, era um produtor de baixo valor agregado e para isso tu não precisas muito realmente, tu podes ter uma grande parte da população analfabeta. Só que chega um momento em que essa estratégia se esgota, e eu acho que a gente já esgotou essa estratégia porque o Brasil hoje é super industrializado, já não pode mais ser um produtor só de produtos de baixo valor agregado. O trabalhador brasileiro já não ganha mais o que ganha o trabalhador chinês, então tu não consegues mais competir nessa área de baixo custo. Esgotou essa fase, a gente tem que ir para a fase seguinte, começar a produção de alto valor agregado, começar a produzir tecnologia. Isso é que vai trazer crescimento para o Brasil, não é vender suco de laranja. Para passar para essa nova etapa, você tem que necessariamente, indispensavelmente investir maciçamente em educação e ter resultados educacionais muito melhores.

Esse é caminho natural das elites ou é uma decisão que terá que ser tomada?

É uma decisão. Se nós tivéssemos uma classe dirigente, tanto da elite financeira quanto da elite cultural, com o mínimo de visão e de comprometimento com o futuro da população brasileira, seria o resultado natural. No Brasil, as pessoas se resignaram com esse status quo. Você tem que martelar repetidas vezes até que a elite se dê conta de que não é uma questão de construir grades mais altas, é uma questão de que o Brasil está parando. Quando o Brasil está parando, isso afeta todo mundo. Afeta o pobre e afeta o rico também. Existe no Brasil essa conversa de Belíndia, lado Bélgica, lado Índia. Até chamar de Bélgica é um exagero, há no máximo uma Bruxelíndia, a zona que dá certo é no máximo do tamanho de Bruxelas, não do tamanho da Bélgica. Qualquer pessoa que já tenha trabalhado em um país de nível de educação normal nota claramente a diferença de produtividade, de rendimento.

Além da questão do volume de dinheiro e do salário dos professores, há outras falácias na educação básica brasileira?

Muitas. Além dessas duas, uma outra é a do nível socioeconômico do aluno, é o establishment educacional dizer que o aluno é ineducável porque ele é muito pobre, porque ele mora na favela, o pai é cachaceiro, a mãe analfabeta. Isso é ridículo. Basta fazer um exercício de lógica para ver que, em algum momento, toda população mundial esteve nesse estágio ou pior. O papel da escola não é impossibilitado pela característica socioeconômica do alunado, pelo contrário. A escola se torna muito mais importante justamente em um quadro de exclusão social porque ela é o único mecanismo que pode proporcionar uma mobilidade social para aquela criança. A escola tem um papel mais importante, não menos importante, nessas circunstâncias. Outra coisa que eu acho muito importante que é ideológica. Tem um dado no perfil dos professores brasileiros que a Unesco fez que é aterrador. Quando se pergunta para os professores brasileiros o que eles acham importante como finalidade da educação, "transmissão, proporcionar conhecimentos básicos" foi apontado por 8,9% dos professores, "formar cidadãos conscientes", 72,2% e "desenvolver a criatividade e o espírito crítico", 65,5%. Tem um viés, que é ideológico, que a escola é o lugar para formação e conscientização do cidadão brasileiro, para formar um cidadão crítico. É um negócio lindo, importado de pedagogos europeus, que acontece em países onde todas as questões básicas da educação já foram sanadas. Claro que a escola é um espaço de formação de cidadão consciente, mas o cara tem que saber ler e escrever. Não há como criar um cidadão consciente se ela não sabe ler nem escrever. Isso é uma falácia total! Quando tu transmites conhecimento dessa maneira para um cara que não consegue ler e escrever, isso é doutrinamento. Isso não é educação, isso não é ensino, é uma tentativa de lavagem cerebral. Tu tens que dar para o aluno condições de pensar por ele mesmo. Se o cara não sabe ler e escrever, esquece, tu não estás formando cidadão consciente nenhum. Isso também é um mecanismo de defesa do professorado brasileiro. Querer resultados, querer que o cara saiba ler e escrever é neoliberalismo, consenso de Washington, é imperialismo. Isso é uma bobagem que emperra muito a progressão da educação brasileira. Eu ouvi um texto do Paulo Freire em uma universidade americana, então não sei se ele foi escrito assim ou se é uma tradução, mas soa melhor em inglês. O Paulo Freire disse que a pessoa precisa "read the word to read the world", quer dizer, ela precisa ler a palavra para ler o mundo. Isso é óbvio, é básico. Não tem como seres consciente, engajado, se não tens um conhecimento mínimo. No momento atual, tem que se despriorizar esse ensino ideológico, esse ensino político porque ele não é factível com o nível de conhecimento que o ensino transmite, que a população. Primeiro tem que ser feito o básico, tem que ensinar a criança a ler e escrever. Eu não estou dizendo para esquecer a dimensão política e ficar 20 anos ensinando apenas a ler e escrever, não, isso é agora. Um curso de alfabetização leva três meses, meio ano. A direção tem que ser essa. Enquanto tu continuares convivendo com esse negócio de que a prioridade é a formação política, tu não vais dar o primeiro passo, não vais formar a base do conhecimento. Esse é um outro problema gravíssimo e que é de mais difícil solução até porque tu não mudas isso por decreto, tu mudas isso com um processo de convencimento. Enquanto esse discurso não for quebrado, tu não consegues evoluir.

Quais são as soluções de curto prazo que podem ter reflexos rápidos na educação?

As primeiras são aqueles processos auxiliares ao próprio ensino, mas que são muito importantes e que todas pesquisas demonstram que têm muito resultado. Garantir infra-estrutura mínima, ter banheiro, ter luz, ter água encanada, ter quadro-negro. A gente não consegue conceber isso, mas tem muita escola no Brasil que não tem quadro, não tem carteiras, não tem lugar para o aluno sentar. Isso tu resolver muito rapidamente, é apenas uma questão de colocar os recursos no lugar certo. Outra coisa que é bastante importante é em relação ao livro didático. Nós temos que deixar de ter esse sistema em que há uma maquete do que deveria ser e passar para um sistema em que o ministério controla a compra de livro bom, não só qualquer livro. Eu acho um absurdo ter toda essa estrutura do Programa Nacional do Livro Didático e deixar que o município e o Estado compre o livro didático que lhe aprouver. Eu acho que tem impor que, se o município ou Estado quiser ganhar dinheiro do Fundef, todas as escolas deles têm que ter livros recomendados com distinção. É um negócio simples, não custa muito nem é muito complicado. E faz com que os professores usem o livro didático. Há também medidas emergenciais do próprio sistema educacional, como cursos de aceleração de aprendizagem, de alfabetização rápida, que não coisas que se resolvem do dia para a noite, mas são períodos relativamente curtos, de três a seis meses, que podem ser implantados com rapidez e vão ter um impacto grande. Dito isso, é importante dizer que não há soluções mágicas para a educação. Educação é um processo intergeracional, quer dizer, de todos os fatores importantes e determinantes da educação em todo mundo o mais importante é a educação dos pais, é a variável que tem mais relevância e que com mais exatidão prevê o desempenho educacional da criança. Isso é um processo que demora gerações e que não vai melhorar do dia para a noite. Precisa de um esforço continuado de dez, vinte anos, precisa mexer em questões como ideologização do ensino, qualidade do ensino, treinamento do professor, tem que mexer nos cursos de preparação de professores. Por mais que tenha fatores que você pode melhorar agora, um salto só vai acontecer ao longo, com trabalho continuado e muito focado em questões que não dá para resolver via decreto, via lei, via decisão administrativa.

O Fundeb faz alguma diferença?

Não. O grande ganho do Fundef não foi em melhora de qualidade porque isso não houve, basta pegar os resultados do Saeb para ver isso. O ganho do Fundef foi atrair mais crianças para a escola porque vinculou a transferência de recursos à matrícula, foi dizer para o prefeito que ele iria receber verba proporcional ao número de alunos matriculados no ensino fundamental. O que esse prefeito fez foi pegar todas as crianças que estavam fora da escola e colocou na escola porque prefeito quer dinheiro. Ele está certo, é positivo que seja assim. Mas isso não traz melhora de qualidade. No momento em que tu já tens praticamente 100% das crianças na escola, atrair mais crianças para escola deixa de ser relevante, o problema é a qualidade. As crianças não saem da escola porque não tem vaga ou porque não tem escola, elas abandonam porque a escola é ruim. A permanência de uma criança na escola é quase como uma luta constante da escola com o mercado de trabalho. Enquanto a escola for boa e fornece conhecimentos, ela é um excepcional investimento. No momento em que ela deixa de ter essa qualidade, ela deixa de ser um investimento e passa a ser um fardo, um custo. O aluno poderia pegar essas horas e estar trabalhando, estar fazendo outras coisas. E é efetivamente o que a gente vê no Brasil. Tu consegues colocar 100% das crianças na escola, mas ela vão saindo, e elas vão saindo porque o ensino é muito ruim, não agrega tanto quanto agregaria para elas a necessidade premente de trabalhar. No momento em que houver uma qualidade melhor, essas crianças vão permanecer na escola. Então, tu não precisas de Fundef, Fundeb para atrair essas crianças para a escola, tu precisas de qualidade.
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