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13/07/2007

Glicério, o submerso retalho da Liberdade

Paulo Totti
12/07/2007
VALOR ECONÔMICO


Davilym Dourado/Valor
Irmã Derly Fabres no Quintal da Criança: o escorregador foi doado por um pai de aluna, catador de papel
Irmã Derly Fabres no Quintal da Criança: o escorregador foi doado por um pai de aluna, catador de papel

Olhos azuis, cabelo ruivo e crespo, pele morena, Guilherme sabe ler e escrever desde os três anos. Agora, aos quatro, já mudou o tipo de letra, de imprensa para cursiva, canta o hino nacional inteiro e, como a maioria dos brasileiros, só vacila na segunda estrofe da segunda parte - aquela do "Brasil, de amor eterno seja símbolo...". O repórter mostrou-lhe a capa do bloco de anotações, escrito em inglês: "Reporter's note book". E ele leu: "Re-pór-ters nó-te bo-óc". O garoto também é rápido em contas simples de somar, diminuir e multiplicar.

Guilherme é superdotado? Na ausência de uma avaliação criteriosa e técnica, o que se pode dizer dele é que é, pelo menos, um privilegiado. Mãe faxineira-diarista, pai sapateiro, morador de cortiço, Guilherme conseguiu vaga numa escola de educação infantil da Baixada do Glicério, em São Paulo. Na escola faz três refeições por dia, convive com meninos e meninas menos dotados, corre no pátio, brinca no escorregador, tem aulas de capoeira, música, dança, rudimentos de computação com acesso à internet, e, como toda a turma de 26 colegas da mesma idade, escova os dentes e desdobra/dobra diligentemente o lençol sobre o colchonete na soneca de uma hora após o almoço. O almoço tem salada, arroz, feijão, panqueca de carne moída, mexerica de sobremesa. E aí está seu privilégio.

Na Baixada do Glicério, um retalho do bairro da Liberdade na região mais central da maior e mais rica cidade do Brasil, só há duas escolinhas reconhecidas (e conveniadas) pela Prefeitura para atendimento gratuito de crianças entre três e seis anos. Somadas, só dispõem de vagas para 160 - há uma terceira conveniada que trabalha com crianças de até três anos.

Segundo a Secretaria Municipal de Educação, seu cadastro computadorizado, que elimina a duplicação de demanda, registra na região do Glicério 212 crianças não atendidas na faixa de zero a três anos e 149 entre quatro e seis. "A realidade é outra", diz irmã Derly Fabres, freira da congregação católica Irmãs da Imaculada Conceição, que há três anos criou o Quintal da Criança, a escola do surpreendente Guilherme e de outras 105 crianças. "Nosso cadastro mostra que deixamos de atender 320 crianças este ano. Não estou incluindo as mães que chegam no portão para perguntar se há vagas. Vão embora desiludidas, sem se inscrever. Paramos de cadastrar. É falta de respeito criar expectativas e não ter como atender. No Glicério há cerca de mil crianças sem pré-escola."

Em verdade, ninguém sabe exatamente a quanto soma a "demanda reprimida" de pré-escolas na região do Glicério. Irmã Derly, com mais de 15 anos de convivência com os problemas sociais da região, reconhece que pode estar equivocada, "para menos". O prefeito Gilberto Kassab (DEM, ex-PFL) anunciou que até o fim de seu mandato, em dezembro de 2008, todas as demandas de pré-escola da cidade serão atendidas, mas, para isso, a população necessitada terá de contar mais com a boa vontade de empresas privadas do que com investimentos da prefeitura. Para o secretário municipal de Educação, Alexandre Schneider, "praticamente não há demanda não satisfeita entre três e seis anos". O "déficit desafiador", segundo Schneider, está na creche (de zero a três anos). E é bastante alto: 90 mil em todo o município.

Este também é um dado empírico. Como a pré-escola não é obrigatória (o fundamental é), o município só cadastra os pedidos de vagas e tem obrigação legal de atendê-los. Não há pesquisas sobre o potencial da população não atendida. Uma das explicações para a ausência de dados confiáveis pode estar no que o Valor ouviu repetidamente de moradores do Glicério: "Funcionários da secretaria quase não vão aos cortiços. Preferem procurar as mães na porta das escolinhas, e daí só falam com quem foi atendido".

O Ministério da Educação fez cruzamento dos dados que recebe das secretarias estaduais (crianças matriculadas em escolas públicas ou privadas) com os da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2005), que indica a população na faixa etária de pré-escola. O cruzamento "desceu" até as regiões do país e o resultado mostra que no Nordeste há mais crianças de quatro a seis anos em pré-escolas (77,6%) do que no Sudeste (75%). A desagregação não chegou à capital paulista e muito menos ao Glicério.

Nada em São Paulo está tão perto da burocracia e do poder quanto a Baixada do Glicério. Situada na 1ª Zona Eleitoral, área do 1º Distrito Policial, da 1ª Subprefeitura e também do 1º Cartório de Registro de Imóveis, a rua que empresta o nome à região está a menos de 600 metros do comando do Corpo de Bombeiros e dos dois prédios do Tribunal de Justiça - o mais antigo, na praça Clóvis Bevilacqua, e o moderno palácio de aço, com sua torre de 109 metros de lâmina curva de vidros azuis.

A Baixada do Glicério também convive com o poder espiritual. Subindo uma ladeira, chega-se a pé à católica Catedral da Sé, no marco zero da cidade. No lado oposto, o missionário David Martins Miranda exibe a igreja pentecostal Deus é Amor, o "maior templo do Brasil", que no dia da inauguração, em 2004, abrigou 200 mil pessoas. Na rua do Glicério está a Igreja Nossa Senhora da Paz. Quarteirão acima, a igreja presbiteriana Han In, sem imponência e quase sempre fechada. Na Tabatinguera, modesta igrejinha anuncia para 12 de agosto a festa de Nossa Senhora da Cabeça. Numa vila que se despreende da Travessa dos Estudantes - calçadas bem-varridas com marcas de giz para o jogo de amarelinha -, Zé Pilintra e Maria Padilha revelam o futuro e reconciliam casais com jogo de búzios e baralho cigano.

Com tais companhias, a Baixada do Glicério mereceria melhor sorte para sua população, estimada em 90 mil pessoas. A metade vive em cortiços e edifícios de até 28 andares com 500, 600, 800 quitinetes cada um - de três a seis habitantes por janela, entre eles uma criança, no mínimo - como o Esplanada e o Branca de Neve, entre outros sem nome, onde a água empoça nas tempestades de verão.

O problema da Baixada do Glicério é que o poder passa por cima dela, a dez metros de altura. Os carros costumam andar muito depressa pela Radial Leste e viadutos do Glicério e 31 de Março. Não dá tempo para interessar-se com o que ocorre embaixo das seis pistas que ligam o Centro, o Sul e o Oeste da cidade ao Leste e ao Norte.

Sob o elevado e suas adjacências, diriam os sociólogos, coabitam o lumpesinato, o proletariado empobrecido e a classe média baixa. Catadores de papel, moradores de rua, ambulantes, albergados, empregados do comércio, serventes do serviço público, pequenos comerciantes, policiais, traficantes de crack e adolescentes drogados, prostitutas e rufiões, mães solteiras, desempregados. E crianças sem escola. Segundo irmã Derly, criança sem escola e desemprego são parte do mesmo problema. "Mãe que não tem onde deixar o filho não arranja e nem procura emprego. No Quintal da Criança, 18 mães conseguiram trabalho depois de matricular seus filhos."

Aos 66 anos, recuperada de uma gripe forte que a levou ao hospital, irmã Derly circula com agilidade pela Baixada. Na rua Almirante Mauriti, embaixo do elevado, uma jovem de não mais de 20 anos aproxima-se. É mais uma na frustrada procura de vaga para a filha de três anos e que não aparecerá nos computadores da prefeitura. Pela mão da mãe, a garotinha sorri sem os dois dentes da frente. Resignada, a moça volta para a banquinha onde vende roupas a R$ 10. Sua banca é uma das 19 no local. Atrás dela, um cartaz adverte: "Área militar, proibido comércio".

Mais à frente, em direção ao Centro, ainda embaixo do viaduto, catadores de papel estão em plena atividade: mulheres separam o material para reciclagem, que elas próprias ou seus companheiros trouxeram da rua durante a noite ou madrugada. A maioria veio do Nordeste ou nasceu em São Paulo de pais nordestinos. O ambiente é sombrio, a luz do dia chega pelas laterais do elevado, filtrada entre montanhas de sacos plásticos.

Paulo e Lucileine formam um casal satisfeito com a vida em comum de catadores. Ele sai à tarde, puxando sua carreta e volta à noite. "Numa cidade de tantas ladeiras, a descida com a carroça carregada é a parte do trabalho mais cansativa e perigosa", diz Paulo, ex-vigilante de empresa falida e que há 13 anos está na profissão. Lucileine faz a seleção do material (80% dos recicladores são mulheres). O casal consegue, em média, R$ 1 mil por mês, vendendo papelão para uma empresa que vem retirá-lo na cooperativa. Eles têm três filhos. Dois já passaram pela escolinha da irmã Derly. Juliana, de três anos, entrou no Quintal da Criança este ano. "Nosso trabalho é importante para a sociedade" diz Paulo. Ele faz uma coerente explanação sobre reciclagem, à qual não faltam expressões como "consciência ecológica" e "autogestão".

Na cooperativa, assistida pela ONG Reciclagem Franciscana, ligada aos frades católicos, não há crianças à vista. As que têm entre três e seis anos freqüentam o Quintal da Criança. As mais crescidinhas já estão na Escola Municipal de Educação Fundamental Duque de Caxias, na praça Dr. Márcio Margarido, com a placa "Esta escola participa do programa São Paulo é uma Escola". Quando irmã Derly passa por lá, garotas de sete e oito anos correm para saudá-la, e as mães mostram o caderno escolar, para a freira avaliar o progresso.

Crianças de zero a três anos são vistas mais adiante, fora dos limites da CooperGlicério, onde começa a área dos catadores clandestinos - "clandestinos, não; desorganizados!", protesta Lucileine. Entre os "desorganizados", algumas mulheres moram longe, em outros bairros onde também não há creches, dormem debaixo do viaduto de segunda a sábado - não há coleta no domingo -, trazem os filhos para o trabalho, e eles crescem no meio do lixo. Avó, duas filhas e três netas - uma de colo, as outras de dois e três anos - dormem numa barraquinha que crianças ricas usam para brincar de acampamento. A poucos metros, um catador juntou pedaços de isopor e improvisou um cubículo para dormir dentro dele. Outro protegeu seu espaço com cortina de plástico preto, atrás da qual assiste TV em tela plana. Água e luz debaixo do viaduto vêm do Albergue São Francisco (450 camas), mantido pelos franciscanos, ali perto.

Quem não mora debaixo do viaduto ocupa os cortiços das vizinhanças. Lindalva e Antônio têm seis filhas e moram numa antiga garagem de chão batido e pé alto, onde folhas de zinco e um pedaço de lona fazem as vezes de telhado. A proteção só cobre metade do teto, e chove dentro de casa, à frente e atrás do quarto-cozinha armado no meio da garagem, com fogão, cama, colchonetes e uma TV usada. Há ratos na garagem e é impossível exterminá-los com veneno por causa das crianças. O casal paga R$ 300 de aluguel. Nem todos cortiços têm banheiro. A solução é a ONG Minha rua, minha casa, também debaixo do elevado. Um oásis. Ali são atendidos moradores de rua. O refeitório é limpo, o salão de festas está enfeitado com bandeirolas juninas, e quem mora em cortiços pode usar seus banheiros.

Tudo o que está debaixo do elevado vai acabar. CooperGlicério e Minha rua, minha casa terão que mudar-se para um terreno da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), nas proximidades. Ainda não se sabe o que acontecerá com os catadores "desorganizados". Segundo Paulo César, a prefeitura considera que um eventual incêndio no local vai atrapalhar o trânsito acima do viaduto, parar a cidade.

Foi para atender aos filhos de catadores que irmã Derly, em 2004, criou o Quintal da Criança, na rua do Glicério, 221. Para isso teve apoio da Associazione Umanitaria Maria Flos Carmelli, entidade italiana de Galarape, perto de Milão, dedicada a ações de benemerência em Bangladesh, Índia, países da África e Brasil. Derly alugou por R$ 3 mil um velho depósito pertencente à igreja Nossa Senhora da Paz, ao lado, e, com R$ 20 mil, fez a limpeza, o calçamento do pátio e reformas para a instalação de cozinha, refeitório e banheiros. Cinqüenta crianças constituíram sua primeira turma, dividida em duas classes de três e quatro anos.

Hoje, a escolinha duplicou seu atendimento, as salas de educação e o dormitório ficam num segundo andar e as crianças de seis anos já saem da escola alfabetizadas. Filhos de catadores continuam maioria, mas há também filhos de presidiários, de prostitutas, de desempregados (perfeitamente integrados, três garotos têm necessidades especiais). O pátio de recreação é amplo e ensolarado. No centro dele há um escorregador, doado por um catador, pai de aluna, que o encontrou no lixo da região dos Jardins, jogado fora por uma escola particular.

O Quintal da Criança funciona com diretora, orientadora pedagógica, seis educadores, cozinheira e auxiliares, num total de 15 pessoas em tempo integral, além de quatro "oficineiros", os encarregados das aulas de dança etc. A rede varejista C&A doa livros para a biblioteca e roupas para o bazar que funciona ao lado dos portões da escola. O Itaú colabora com material de higiene e alunos da Escola de Propaganda e Marketing da Universidade Paulista (Unip), todos os meses comparecem com alimentos e roupas. Os computadores também são doação. A Associação Maria Flos Carmelli continua contribuindo e, no ano passado, foi firmado um convênio com a prefeitura, o que assegura um ingresso mensal e estável (informação da Secretaria de Educação) de R$ 161 por criança.

"Gostaria de ter 400 crianças, mas não tenho mais espaço", diz irmã Derly, nascida no Espírito Santo de uma família de lavradores. Seus pais tiveram 22 filhos, dos quais 16 estão vivos. "É preciso dar um futuro às crianças do Glicério. Haveria menos violência se houvesse mais escolas."

Foi no Glicério que Marcos Willians Herbas-Camacho, o Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC), começou a ficar famoso. Morava lá e era trombadinha na Sé, aos nove anos. Dizem que era muito inteligente. Agora está preso. A batalha da irmã Derly faz crer que Guilherme e seus 105 coleguinhas terão melhor futuro.

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