São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Era uma vez a América

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Buffalo, norte do estado de New York. No fim da tarde, ruas desabitadas pareciam sem destino ou utilidade. No hotel, porteiros indolentes; chaves de quarto trocadas; telefones defeituosos; mau humor dos gerentes e comida cara e ruim completavam o cenário involuntário de um fascinante "film noir". Um turista espanhol, tomado de espanto, disse: "Que cidade feia e triste. Era uma vez a América.
Não foi preciso muito. A alusão ao filme de Sergio Leone fez-me ver, de imediato, um dos traços marcantes da cultura americana. Quem vê os Estados Unidos, na grandeza ou na miséria, reconhece o que, de certa forma, já sabia. Não pelo contato com a realidade mas por meio da ficção. A surpresa do espanhol, como a minha, estava em constatar: de fato, é como nos filmes, nos romances, na música, na pintura etc.
A primeira vista, a observação é acaciana. Que novidade existe em se afirmar que toda e qualquer realidade só se torna "realidade" quando interpretada? O que de extraordinário pode haver no fato dos Estados Unidos, como qualquer país rico e exportador de cultura, terem difundido sua imagem por meio da ficção? Mas é justamente a aceitação tácita deste modo de ver as coisas que se trata de discutir. Nem sempre notamos a peculiaridade daquilo que nos é familiar. Uma coisa é admitir que todas as culturas conhecidas retrataram-se, de uma ou de outra maneira, nas artes, mitos, ciências, filosofias, literaturas etc; outra coisa é entender como uma cultura pôde fazer do documentário sobre si matéria de crítica e reinvenção permanente de crenças e costumes. Isto implica em dar à imaginação cultural autonomia para criar alternativas de mundo e força para que tais invenções sejam respeitadas e levadas à sério.
A crença no valor desta prática surgiu na antiguidade clássica, foi retomada nos projetos dos revolucionários americanos e franceses, persistiu no pensamento dos socialistas democráticos e tornou-se um dos grandes princípios de nossa tradição moral. Apostar num futuro melhor, distinto do passado e do presente, converteu-se no objetivo central da crítica ficional, científica, filosófica etc. Durante séculos, nossos heróis foram os inventores, descobridores ou aqueles que lutaram para que os ideais permanecessem vivos.
Hoje, tudo isto é pouco a pouco esquecido. O mundo entrou no transe do neoliberalismo econômico e da eficácia tecnológica. A civilização, como disseram os alemães; a sociedade, como disseram os franceses, devoram a cultura. Visionários e revolucionários são vistos como personagens tão improváveis quanto príncipes e princesas de contos de fada. Fala-se ruidosamente de ética. Porém se trata de uma ética caseira, submissa ao que já é. A ética da ousadia, do atrevimento e da defesa radical do humano foram desinvestidas.
Pode-se perguntar o que a América do capitalismo, do racismo, da obsessão pelo dinheiro, do individualismo possessivo, da sociedade de massas, do consumo desenfreado, das intervenções brancas ou sanguinolentas em países pobres tem a ver com ideais e utopias. É simples. Os Estados Unidos foram provavelmente a nação capitalista industrializada mais crítica em relação ao poder que o Estado ou a máquina econômica pode exercer sobre a moral coletiva ou individual. Um exemplo ilustra o que penso.
Na América, afirma-se, nasceu a sociedade de massas. Entretanto, em que outro lugar do Ocidente rico a massificação dos indivíduos foi mais debatida e condenada? Antes mesmo que a "massa", enquanto realidade sócio-econômica, existisse a cultura crítica já havia descrito todas as causas e consequências de suas mazelas políticas e pessoais. Historicamente, o resultado foi único. A "massa" americana é a "massa" mais diversificada em gostos e preferências etico-estéticas. A massificação pelo consumo, a imaginação crítica respondeu com uma diferenciação ímpar nos estilos de viver e pensar.
Argumentar que uma ética idealista deste gênero jamais existiu, dado que convicções morais nunca estão isentas de contágio por interesses materiais é irrelevante. Mesmo supondo que crenças éticas possam justificar-se racionalmente a partir de fundamentos extra-éticos –tese discutível– saber o que causa uma crença só importa quando se trata de defender a crença que está em risco. Do contrário, especular sobre as origens pré-éticas ou para-éticas da ética é olhar para uma caixa preta fechada ou colar os ouvidos numa porta à prova de som, esperando ver e ouvir um segredo que não está em lugar algum.
Se o interesse pela função crítica da cultura é provocado pelo narcisismo, hedonismo ou puritanismo, então, boas vindas a tais hóspedes. Do mesmo modo, não faz sentido julgar o valor desta prática cultural pela maior ou menor capacidade que teve de barrar os descaminhos dos processos sócio-econômicos. Uma coisa não está atrelada à outra. Além do que, a história é feita de acasos, e nem sempre o melhor e o mais justo são os vencedores.
Mais interessante, a meu ver, é comparar a imagem de sujeito e sociedade associadas à América, com o que nos chega do rico Oriente asiático. Tentemos imaginar que figura do sujeito moral pode ser derivada ou construída sobre a civilização dos multimídia. No que me concerne, feita a tentativa, fico com a tradição: "O sonho americano está morto! Viva o sonho americano!"

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