São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Cientistas ainda procuram Deus

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Como qualquer seção de cartas de leitores, a da revista britânica "Nature" também é uma fonte inesgotável de ensinamentos e diversão. Ao longo de 1993, por exemplo, ela hospedou uma polêmica inusitada sobre a origem da religião que teve seu último lance em 16 de dezembro. Entre outras heresias, esteve em discussão se a crença em Deus tem raiz genética, se provém da seleção natural de idéias ou se, como nos velhos tempos, não passa de uma questão de fé.
No centro dessa disputa científico-teológica está Richard Dawkins, autor de "O Gene Egoísta" e "O Relojoeiro Cego", velho frequentador de polêmicas. Entre as suas mais desconcertantes propostas está a de que idéias ("memes", como diz) estão também submetidas a uma seleção natural.
Conceitos tão elevados quanto "Deus" e a própria ciência sobreviveriam somente na medida de sua capacidade para destacar-se do caldo geral de construções mentais e reproduzir-se. O sucesso reprodutivo dos memes seria determinado, segundo Mario Vaneechoutte (que defendeu este ponto de vista na edição de 23 de setembro), por seu poder de conferir aos indivíduos alguma certeza sobre o futuro, de diminuir a angústia e a ansiedade inerentes ao ser humano.
Sim, porque segundo esse pesquisador do Hospital Universitário de Ghent (Bélgica), o homem busca nas idéias a fonte de satisfação perdida quando se tornou algo mais que um bicho. "Animais caem no sono depois de uma boa refeição ou sentem alívio depois de escapar de um predador, mas os humanos perderam sua habilidade de gozar plenamente a felicidade presente por causa da ansiedade quanto a encontrar comida amanhã ou escapar da próxima vez."
Esse gênero de correspondência é mais comum na publicação do que sugerem suas capas e índices assustadoramente técnicos. O próprio Vaneechoutte respondia a carta publicada em 15 de abril, de Brian Josephson, do Laboratório Cavendish (Cambridge, Reino Unido), defendendo que Deus não se encontra no outro mundo nem no coração dos homens, mas em seus genes.
A genética, vedete do ano 1993, não poderia mesmo ficar de fora nesse assalto reducionista ao sagrado. Para Josephson, a função e a utilidade da religião é promover a "bondade" humana, tornando os grupos que a ela aderem mais aptos para a sobrevivência. "Especulo que as práticas religiosas tenham em parte base genética, envolvendo genes ligados a um potencial para a bondade."
A reação teológica a tanta soberba humana veio em 16 de dezembro. R.A Savidge, da Universidade de New Brunswick (Canadá), proclamou: "Nós é que somos criação de Deus, e não Ele nossa". O bem-humorado pastor metodista Richard Courtney, de Cheltenham (Reino Unido), sugeriu à "Nature" que peça a revisão especializada ("peer review") de teólogos antes de publicar mais artigos sobre religião.

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