São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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O futuro ao Caos pertence

HELIO GUROVITZ
DA REPORTAGEM LOCAL

Inútil fazer previsões para o ano novo. A teoria do caos, que estourou na matemática no final da década passada, dá a entender que o futuro permanece impenetrável. Nas leis que o regem, o acaso é fundamental.
Basicamente, a teoria diz que prever acontecimentos futuros depende muito do ponto de onde partimos. Alterações microscópicas no Universo podem ter consequências drásticas. Um único elétron, a uma distância quase infinita, pode estragar um piquenique (veja ilustração). Se nem podemos prever o tempo que vai fazer amanhã, que dizer do resto?
O físico-matemático belga David Ruelle foi pioneiro na popularização do caos. Em "Acaso e Caos", lançado em dezembro, Ruelle explica de modo simples e direto as complicadas teorias que comandam o Universo.
Em um Universo clássico, por exemplo, seria impossível dar conta de todas as condições presentes que determinariam o futuro. Já num Universo quântico (baseado em teorias sobre átomos), a situação piora: nunca temos certeza, no presente, da posição e velocidade de partículas. Temos apenas probabilidades, determinadas pelo acaso.
Ruelle lembra que o acaso está até nos buracos negros, de onde só escapa uma radiação aleatória. "Deixai a esperança, ó vós que entrais", disse o físico britânico Stephen Hawking sobre eles, lembrando o verso de Dante sobre a porta do inferno. Ruelle ilustraria seu livro com a série de esculturas do francês Auguste Rodin sobre o tema. "É bonito", disse em entrevista à Folha por telefone.
Folha - Segundo a teoria do caos, é verdade que, com um poder extraordinário de cálculo, poderíamos prever o futuro?
David Ruelle - A teoria diz isso para um Universo clássico. Acho que não há sentido em fazer cálculos precisos para uma teoria que não é válida, pois não vivemos em um Universo clássico.
Folha - Por que o futuro permanece imprevisível?
Ruelle - Por várias razões. Primeiro, porque mesmo com a teoria clássica é impossível fazer cálculos de precisão absoluta. Depois porque na teoria válida, a teoria quântica, o problema do acaso ainda não foi compreendido.
Folha - Qual o papel do acaso?
Ruelle - Ele só pode ser avaliado dentro de uma idealização do mundo. Pensamos que o mundo existe e fazemos perguntas sobre ele, mas a posição do cientista é diferente. Ele coloca uma teoria entre o mundo e si. As questões sobre o acaso devem ser colocadas dentro de uma teoria. É por isso que fiz a distinção entre teoria clássica e quântica.
Folha - Qual a relação entre a teoria do caos e a predestinação?
Ruelle - Os cientistas, sobretudo físicos, fazem afirmações mais sobre teorias que sobre o Universo. Quando se fala em predestinação, as teorias em vista são teológicas. Não quero descreditá-las. Teorias morais e teológicas estão ligadas ao espírito humano e é difícil evitá-las. Mas também é difícil relacioná-las a teorias científicas. Não acreditando em Deus, essas questões me dizem pouco. Para quem acredita, há um problema que não posso resolver por eles: se Deus conhece o futuro, como podemos ser livres? Se ele não conhece o futuro, como é onipotente?
Folha - São questões que não estão resolvidas desde Santo Agostinho...
Ruelle - Não estão resolvidas. Mas são questões difíceis de formular num quadro científico. Como físico, sinto dificuldades para responder a essas questões.
Folha - Mas são questões que dizem respeito à teoria do caos, que brinca com o acaso.
Ruelle - A teoria do caos mostra que não há solução científica fácil. Se fosse possível mostrar que o Universo pode ser previsto com facilidade, seria uma contradição maior. A dificuldade de prever o futuro está de acordo com nossas idéias intuitivas.
Folha - Como nasceu a teoria do caos? Qual foi o seu papel?
Ruelle - A teoria já existe desde o fim do século passado, mas ressurgiu recentemente, porque o crescimento das imprecisões se tornou manifesto quando tivemos computadores para ver os erros crescendo. Meu papel teve relação com a turbulência hidrodinâmica.
Folha - No começo as pessoas não aceitaram a teoria, não foi?
Ruelle - Exatamente. As pessoas tinham idéias bastante diversas e até contraditórias sobre a turbulência. O que tornou as novas idéias aceitas foi a experiência.
Folha - Há uma certa ironia sua em relação ao mundo acadêmico. É uma vingança contra aqueles que o desprezaram?
Ruelle - Não diria uma vingança contra coisas de que fui vítima. Há uma certa vingança contra cientistas que adotam pontos de vista inconsistentes.
Folha - O sr. acha que eles se tornaram burocratas?
Ruelle - Há uma certa burocracia. Também há falta de modéstia de muitos cientistas em relação ao mundo em geral.
Folha - Como o sr. vê o desenvolvimento atual da ciência? Quais são as vias mais promissoras?
Ruelle - É a biologia que vai trazer as coisas mais extraordinárias e mais perigosas, mais terríveis.
Folha - O sr. fala da genética?
Ruelle - Sim, e da possibilidade de mudar os genes. Haverá barreiras morais, mas enquanto existir a possibilidade técnica haverá problemas.
Folha - O sr. não acha que o desenvolvimento mais difícil da ciência no momento é decifrar o funcionamento do cérebro?
Ruelle - É um dos aspectos da biologia. É também um problema conceitual. Será que poderemos, em uma teoria futura do funcionamento do cérebro, integrar as idéias de Freud sobre o inconsciente? Como? É uma questão para a qual não temos resposta.
Folha - O sr. faz críticas ao livro de Roger Penrose, "A Nova Mente do Rei". Quais são elas?
Ruelle - Ele se coloca o problema da liberdade, a idéia de que há escolha entre uma coisa e outra, que parece contraditória com as teorias físicas. Para ele, a solução residiria em uma teoria de gravitação quântica, que explicaria a liberdade... Acho que, do ponto de vista metodológico, é uma abordagem falha. O que é preciso entender não é por que o cérebro é livre, mas por que uma máquina diz, em determinado momento, "eu sou livre", ou "acho que sou livre". Para tratar o problema da liberdade cientificamente, é preciso conceber uma resposta que tenha sentido científico. Não moral ou espiritualista. Isso leva a coisas que podem não ser agradáveis, como considerar o espírito humano uma máquina e se perguntar quando ela emitirá a mensagem "acho que sou livre".
Folha - O sr. diz no livro que a ciência é amoral e irresponsável.
Ruelle - Lutei contra a idéia de que a solução para os problemas do mundo seria reunir alguns sábios e colocar o governo do Universo em suas mãos. Podemos pedir que eles resolvam problemas concretos, mas quando os problemas fazem apelo a valores morais, é o senso moral que prevalece. E o fato de deter saber não é garantia de moralidade.
Folha - O sr. não acha que a própria teoria do caos questiona a onisciência dos cientistas, dizendo que às vezes a melhor estratégia é se orientar pelo acaso?
Ruelle - Não sei se usar o acaso é uma boa estratégia em geral. É verdade que, em situações de conflito, é útil não deixar conhecer de antemão o modo como reagiremos. Mas isso é diferente de dizer que os sábios não são bons políticos. A política exige qualidades diferentes das necessárias para ser erudito.

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