São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Reflexão no Pelourinho

ZÉLIA GATTAI

Três vezes Jorge Amado vacilou, por três vezes desculpou-se, não poderia doar seus arquivos, acervo relativo a 60 anos de vida literária. As universidades que os solicitavam eram entidades de alto gabarito: uma de Boston, uma da Pensilvânia e, por fim, a Universidade de São Paulo.
Propostas sérias, o enorme material seria preservado dentro da melhor técnica, não apodreceria com o passar dos anos, com a umidade e o bolor, seria posto à disposição de centenas de estudantes... Ao ver Jorge titubear saí de meus hábitos, soprei-lhe ao ouvido: "Teu acervo só pode ficar na Bahia!"
Somente em 1986, a decisão: o acervo seria oferecido à Bahia, a seu povo. Uma fundação seria instituída, jamais um museu, imposição de Jorge Amado. Para ele a fundação deveria ser uma casa de cultura, viva, atendendo a quem precisasse pesquisar a literatura baiana ou o romance brasileiro, promovendo eventos culturais: conferências, seminários, encontros, congressos, lançamentos de livros, exposições, exibição de filmes. Não se restringir a cuidar do acervo do escritor. Jamais deveria tornar-se um museu!
O então presidente da República, José Sarney, escritor, instituiu oficialmente a Fundação Casa de Jorge Amado, a 2 de julho de 1986, com o salão do Palácio do Planalto repleto de amigos, uma festa da cultura. Instituída mas... e agora José?
Movimentaram-se amigos e não amigos, leitores e não leitores, na dura tarefa de pôr de pé a fundação. Não foi fácil mas, depois de idas e vindas, desânimo e esperança, chegamos a bom termo: encontrara-se o prédio ideal, no local certo mas... volto a citar Carlos Drummond de Andrade, havia uma pedra no meio do caminho: a casa encontrada era uma das mais belas do Pelourinho, senão a mais bela, porém situava-se no brega.
O Pelourinho –centro histórico da cidade de Salvador, declarado patrimônio da humanidade pela Unesco–, desmanchava-se no passar do tempo, ruía, abandonado, vítima do desleixo, da miséria, da marginalidade, da ignorância. Nos becos e ruas, transformados em depósitos de lixo, reino de ratos, baratas e moscas, a sujeira e a fedentina dominavam. Um brega! "Jorge Amado está louco –era voz geral–, ao arriscar os arquivos de uma vida inteira num casarão sem nenhuma segurança, em lugar habitado por prostitutas e marginais..."
Jorge Amado foi categórico: "Não aceito, não concordo com nenhum outro lugar que não seja o Pelourinho". Cenário de seus romances, ali nasceram e transitam os personagens do escritor. Na vizinhança situa-se o casarão onde Jorge Amado vivera na adolescência e aprendera a vida e a cultura popular.
Nesse contexto, a 7 de março de 1987, foi inaugurada a "Fundação Casa de Jorge Amado", no coração da Bahia, no largo do Pelourinho, no belo casarão azul, em pleno brega. Na calçada junto à porta, guardião da casa, foi colocado um exu de ferro, escultura de Tati Moreno.
Iniciaram-se as cerimônias de inauguração com a benção de dom Timóteo Amoroso, abade do Mosteiro de São Bento, e o axé de Luis da Muriçóca, pai-de-santo do Terreiro da Muriçóca, na Vasco da Gama.
Enquanto dom Timóteo pregava palavras de amor e tolerância, pombinhos brancos –símbolos também de amor e tolerância– libertados por Luis da Muriçóca voavam janelas afora, tangidos por ramos de arruda. No mesmo momento, na rua, um mísero grupelho de políticos sectários, ignorando a importância histórica da inauguração, sem o mínimo escrúpulo nem o menor respeito, tentava estragar a festa com gritos e vaias, slogans eleitoreiros.
Estávamos em plena campanha eleitoral, quando as paixões políticas cegam, quando a estreiteza e o desrespeito passam a dominar as mentes tacanhas. Aproveitavam a festa da cultura para hostilizar o ex-governador Antonio Carlos Magalhães e o presidente da República, José Sarney, presentes à cerimônia.
Quanto ao povo, recebeu o presente do acervo de seu escritor com música e dança, festa sem limites. Ouviu-se a voz de grandes cantores num show que varou a madrugada. Jorge e eu abrimos as portas de nossa casa do Rio Vermelho, num grande almoço. Convidamos intelectuais e políticos, de todas as tendências, adversários, inimigos, sem nos importar com as paixões desencadeadas pelas eleições. A festa decorreu alegre, na maior cordialidade. O sectarismo e a mesquinhez permaneceram longe de nossa porta.
Ao retornar ao governo da Bahia, anos depois, Antonio Carlos anunciou que ia restaurar o Pelourinho. Admiradora de Antonio Carlos desde os tempos em que, como prefeito, conseguira colocar esgoto na cidade de Salvador (até então todas as casas tinham o problema das fossas), confesso que fiquei cética: como iria ele realizar o impossível? Fosse coisa fácil, o assunto da restauração do Pelourinho já teria sido solucionado há muito. Mas o desafio estava feito. Quantos anos deveríamos esperar?
A vida editorial de Jorge Amado (e os compromissos dela decorrentes) transcorre hoje mais no estrangeiro do que no Brasil. Por isso passamos largas temporadas fora do país.
Longe de nossa terra, por meses e meses seguidos, as saudades aumentam, cresce o interesse do que se passa no Brasil. Infelizmente, as notícias que nos chegam aos ouvidos são tristes, desoladoras: roubos, assaltos, chacina de crianças, miséria, fome... O Brasil passou a ser sinônimo de violência, miséria, infância abandonada e assassinada, corrupção, fome... Coisas terríveis são mostradas nas televisões, ocupam as colunas de jornais.
Sobre a restauração do Pelourinho, nenhuma palavra. Por isso, ao chegarmos à Bahia, em maio de 1993, no dia da inauguração da primeira parte restaurada do centro histórico, não pudemos acreditar em nossos olhos: onde estaria o casario sujo e triste, ameaçando desabar? Pois estava ali mesmo, em nossa frente, de corpo inteiro e roupa nova, colorida. Cadê as montanhas de lixo? "O gato comeu!"
Nas ruas limpíssimas passeavam baianas lindamente trajadas... Eu disse a Jorge: "Começo a acreditar em milagre!". Com o pintor Carybé, nosso compadre e amigo, nos sentamos na soleira de um casarão, vendo o povo passar, entusiasmados. Regalavámos-nos apreciando o requebro e o dengo das baianas sestrosas parecendo sair dos desenhos do grande Carybé, comovíamo-nos com os casarões resgatados das ruínas e com a alegria do povo.
Uma segunda parte do centro histórico começava a ser restaurada. "O homem está com força total!", diziam uns... "Está com a cachorra!", repetia o povão. Além do Pelourinho, o governador recuperara o Teatro Castro Alves, o belo, o grande teatro da cidade, há anos no mais cruel abandono, morto e quase sepultado. Mais do que uma recuperação, tratava-se do milagre da ressurreição. E a lagoa do Abaeté, cantada por Caymmi? Abandonada, poluída, perigosa, suja... O jeito era restaurá-la em sua inteireza e formosura, fazê-la voltar a inspirar os poetas...
Mas nem só de arte vive o homem, e o homem construiu hospitais e escolas, muitas escolas, tudo em ritmo de urgência. Como se isso não bastasse, de comum acordo com o governador de Sergipe, foi planejada a abertura de uma estrada ecológica, a "Linha Verde", ligando pelo litoral os dois Estados, encurtando caminho, passando por recantos de beleza única, até então inatingíveis.
Novamente fomos à Europa, novamente notícias espantosas do Brasil chegaram aos nossos ouvidos: um bando de anões, inescrupulosos ladrões, havia metido a mão, fundo, no dinheiro do povo brasileiro. Roubalheira vergonhosa, com sórdido assassinato pelo meio, muita gente boa comprometida, a corrupção na ordem do dia. Em geral otimista, desta vez comecei a desanimar: "Qual! Nosso Brasil não tem conserto! Não tem jeito! Não existe mais patriotismo!"
Após meses de ausência, ei-nos de volta à Bahia. Um convite do governador Antonio Carlos Magalhães nos convocava, convidava Jorge para inaugurar a segunda etapa da restauração.
Assistimos à missa que iniciou o programa; poucas vezes na vida me emocionei tanto. Emocionei-me com os sermões e com a oferenda levada por operários e pelas baianas, sobretudo com o povo na igreja e no largo.
Tínhamos grande curiosidade de ver como estava funcionando a parte já restaurada do centro histórico. Comprovamos, satisfeitos: tudo estava além do que imagináramos; completamente ocupada por lojas de arte, restaurantes, escolas, museus... Não havia mais o perigo de um retrocesso. O Pelourinho estava salvo. Pedi notícias dos antigos moradores; todos haviam sido indenizados: "Ninguém foi expulso da área, não houve a menor violência contra a população".
A segunda etapa, a exemplo da primeira, lá estava, deslumbrante. Um casarão vermelho enchia nossos olhos com sua beleza, as escadarias e a igreja do Passo –cenários de nossa dramaturgia e de nosso cinema– estavam restaurados e, mais uma vez, me comovi.
Ao me ver tão deslumbrada, o governador riu satisfeito: "Já partimos para a terceira etapa, em março quero entregar o Pelourinho ao povo da Bahia".
Meu otimismo retornou numa reflexão: se um administrador consegue realizar uma obra dessas, quem sabe muitos outros se habilitem a seguir seu exemplo, meter os peitos para restaurar o Brasil? Bastaria um mutirão de patriotas dispostos para livrar o Brasil de tantos ladrões e gananciosos, de tanta sujeira, criar condições para restaurar a economia do país. Não posso deixar de citar o exemplo de Betinho, corajoso e incansável, movendo céus e terra pelos necessitados, pelos que sentem fome. Ainda há esperança? Claro que há. Só há.
Vivemos novamente um momento eleitoral, quando as paixões políticas desconhecem a realidade e a baixaria domina. Eu me pergunto se o ridículo grupo que tentou macular a festa da inauguração da "Fundação Casa de Jorge Amado" continua no propósito de vaiar o governador da Bahia, ignorar seu trabalho sério e honrado em função do povo, em função da Bahia e do Brasil.
Nosso primeiro programa para este início de ano vai ser um passeio pela Linha Verde, recém-inaugurada. Iremos, alegremente, até Sergipe, parando aqui e ali, passando por Mangue Seco, visitando a terra de Tieta do Agreste. Mais do que nunca é preciso acreditar no Brasil e apostar em seu futuro.

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