São Paulo, quarta-feira, 5 de janeiro de 1994
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Receitem comida

JOSÉ ELIAS AIEX NETO

No último dia 22 de outubro a AMB (Associação Médica Brasileira) deliberou, através de sua assembléia de delegados, que a entidade deve participar ativamente da campanha nacional de combate à fome. A idéia central é a elaboração de um sistema de participação absolutamente descentralizado e simultâneo, abrangendo todo o território nacional.
A intenção é fazer com que o médico acabe tormando-se um cidadão que luta pela erradicação da fome no país. Será realmente uma contribuição inestimável para este movimento que vem se constituindo na mobilização mais vigorosa da sociedade civil brasileira, para resgatar a dignidade dos que vivem na miséria.
É preciso, no entanto, se ter em mente que a fome, que atinge hoje 32 milhões de pessoas no país, não tem sido prerrogativa de vagabundos que não querem trabalhar. Está atingindo trabalhadores que não têm condições de garantir a comida de seus filhos, em virtude dos baixos salários.
Também geradora de fome é a incapacidade do Estado brasileiro de garantir as necessidades básicas do cidadão, como saúde, educação, trabalho, moradia, transporte adequado, lazer, saneamento básico, segurança, etc. Tem muita gente passando fome porque está tendo que gastar dinheiro para custear demandas que deveriam ser atendidas pelo Estado. A saúde é o maior exemplo disso.
A Constituição Federal, em seu artigo 196, diz que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Como os poderes públicos não cumprem o preceito constitucional, o cidadão é obrigado a gastar com saúde o dinheiro que pode faltar para a comida.
Fazendo uma autocrítica profunda, temos que admitir que as entidades médicas nunca tiveram uma atuação firme na defesa da cidadania, como o fazem a OAB e a ABI, por exemplo, na defesa do Estado democrático e de direito.
A questão da fome está profundamente ligada à saúde. Se as entidades médicas (AMB e Conselho Federal de Medicina) resolverem assumir a bandeira da brasilidade, muita coisa pode mudar. Há que se conscientizar o médico a respeito de seu papel como agente de saúde, mas principalmente de cidadão perante uma sociedade doente por falta de alimento.
Tendo em vista que o receituário médico é um documento que aponta a necessidade de um determinado recurso para o cidadão recuperar a saúde, penso que se os médicos, frente a um caso evidente de fome, passarem a receitar comida, estarão contribuindo para que nossas autoridades passem a respeitar mais a vida humana. Para começar a campanha, receitem comida, colegas!

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