São Paulo, quarta-feira, 5 de janeiro de 1994
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Culpa é o novo produto da propaganda

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não é brincadeira o número de campanhas cívicas em curso no país. Contra a fome, a favor da ecologia, contra a Aids, a favor da microempresa; todo tipo de "mensagem" simpática é divulgada pelos meios de comunicação.
Há, certamente, um conteúdo positivo nesse esforço mobilizatório. Mas caberia analisar com cuidado algumas iniciativas e peças de propaganda atualmente em curso.
Veja-se, por exemplo, um anúncio da Unicef contra a fome, transmitido na TV. Mostra um menino diante de seu prato de comida, evidentemente vazio. Os talheres estão postos, arrumados numa implausível ordem burguesa. O menino espera ser servido. Não é. Olha a faca, enfia-a na cintura. Mensagem: a fome produz violência. A criança que não come, assalta.
É verdade. Mas será que esse anúncio funciona, pretendendo apelar para a caridade da classe média?
No fundo, o argumento dessa propaganda é moralmente ambíguo. Parece dizer mais ou menos o seguinte: "atenção, vocês aí, que estão bem de vida. Se vocês não se preocuparem com os menores carentes, vão terminar se dando mal."
Não é simplemente o escândalo da fome –tal como apresentado há alguns dias na Folha: fotos de crianças esquálidas no Cariri ocidental– o que aparece neste anúncio. Há um recurso, digamos, extramoral na propaganda. Insere-se mais no campo das ameaças do que no da solidariedade humana.
"É de seu interesse, telespectador, que a fome seja erradicada". Senão, você será assaltado. Apela-se mais para o egoísmo do que para a caridade.
Se formos levar o raciocínio às últimas consequências, a mensagem da Unicef provavelmente cairá por terra.
Pois é muito mais fácil, e menos dispendioso, aplicar dinheiro na segurança pública do que na erradicação da fome. Analisando a coisa de um prisma puramente individual, pagar dois guarda-costas para me protegerem diminui consideravelmente minhas chances de ser assaltado. E pagar o equivalente a dois salários em cestas básicas para favelados não garante coisa nenhuma.
Esse tipo de ameaça lembra muito os raciocínios da política externa brasileira nos anos 50. No governo Juscelino, o poeta Augusto Frederico Schmidt foi encarregado de divulgar nos Estados Unidos a "Operação Pan-Americana". Em outras palavras, tratava-se de pedir investimentos americanos para o desenvolvimento brasileiro. "Caso contrário, o apelo comunista será irresistível entre as massas famintas".
Contra esse "apelo comunista", foi mais barato e prático dar um golpe de Estado.
Outra campanha correta e necessária, mas nem por isso isenta de problemas, é a que se refere ao uso de preservativos. Obviamente, todo mundo deve ser esclarecido quanto aos riscos de contágio pelo vírus da Aids.
Mas cumpre fazer uma pergunta. Se você soubesse que seu parceiro ou parceira é soropositivo, você teria coragem de transar, mesmo com camisinha? Ainda que mitigada pelo preservativo, a preocupação com o contágio seria, sem dúvida, enorme.
A propaganda a favor da camisinha projeta, contudo, certezas indevidas. É como se, usando-a, você afastasse qualquer possibilidade, não simplesmente de contaminação, mas também de soropositividade no parceiro.
Use camisinha, e tudo bem. Tudo bem, no âmbito da realidade médica. Mas "tudo bem", no âmbito da psicologia individual, só se o cidadão agir no pressuposto de que a outra pessoa não está contaminada.
Ora, esse pressuposto é o mesmo de quem faz sexo sem camisinha... Os riscos são diferentes, num caso e noutro. Daí para a apologia publicitária do preservativo, a distância é bem grande. Claro que, na dúvida, todos devem usar camisinha. Mas dúvida por dúvida, sempre há a possibilidade de que a camisinha se rompa.
Também merecem exame mais detido, a meu ver, os inúmeros anúncios e lemas a favor da ecologia. Em geral se inclinam a fazer de você "responsável" pela defesa do verde.
"Destrua as ondas, não as praias", é o que diz, com notável inépcia verbal, um adesivo comum nos vidros de automóvel. "Proteja nossas matas", "salve as baleias", é uma papagueação que ouvimos diariamente.
Certamente, é importante "conscientizar" a população a esse respeito. Melhor, claro, que sacos de pipocas sejam jogados no lixo do que na rua.
Mas desconfio que cada cidadão comum pode perfeitamente jogar quantos sacos de papel e latas de cerveja que quiser, que não estará alterando tanto assim o equilíbrio ecológico. Pelo menos, não de forma proporcional aos estragos produzidos pelas grandes indústrias, pelas empresas de mineração, de pesca, de cultivo.
Admita-se que, se cada "cidadão" fosse mais atento ao lixo que joga no ambiente, as coisas melhorariam. Mas a propaganda ecológica nem por isto está isenta de crítica. "Responsabiliza" todo mundo –de veranistas casuais a grandes empresários– de forma equivalente. É menos agressiva, menos "acusatória" do que poderia ser contra quem merece, à medida que joga com a culpa individual de todos que são simpáticos à causa, em vez de incidir sobre as razões mais gerais, "sistêmicas", do problema ambiental.
Nada mais ridículo do que ecologistas do Primeiro Mundo perseguindo madames com casacos de pele. É como se houvesse uma sede de "culpabilizar" a primeira pessoa que apareça, de fazer tudo depender de decisões morais, quando o fenômeno da degradação do meio ambiente exige, mais do que a mera "conscientização individual", uma crítica a todo o sistema, a hábitos culturais bem mais arraigados e na aparência mais "inocentes" do que o uso de um casaco de pele.
Talvez haja um ponto comum em tantas campanhas e mensagens –outros exemplos e ilustrações poderiam ser dados: direitos do consumidor, amor no trânsito, exija a nota fiscal etc.– : é que, de certo modo, raciocina-se sempre em termos de culpa e de inocência, de responsabilidade pessoal, de conscientização privada.
A consequência, em geral, é pregar-se aos convertidos. É apostar numa "conscientização" abstrata, como se a sociedade fosse resultado de uma soma de pequenas cabecinhas, em tese, capazes de se convencer daquilo que, no fundo, é melhor para elas. Não que a conscientização seja desimportante. Mas seu intuito missionário, mais do que realmente político, tende a desconsiderar que forças estão de fato em jogo.
Mais verbas para a pesquisa contra a Aids, uma política industrial mais rigorosa, uma racionalização do uso dos alimentos, formas de reorientar as práticas de consumo, por exemplo, seriam um passo além de toda a prática –positiva e necessária, por certo– de remexer o tempo todo com a "consciência" do cidadão.

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