São Paulo, quarta-feira, 5 de janeiro de 1994
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Crianças do cinema vão da inocência à perversão

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Na Inglaterra, o trauma é completo. Em novembro passado, os dois assassinos-mirins de Liverpool, Robert Thomson e Jon Venables, 11, foram condenados à prisão por tempo indeterminado. Em dezembro, a censura britânica pôs em quarentena o filme "The Good Son", de Joseph Ruben, lançado este ano nos EUA. Ali, Macaulay Culkin, 13, trama para matar a mãe e a irmã, entre outras atrocidades.
Em outros países, a criminalidade infantil já está deixando os especialistas de cabelo em pé (leia texto nesta página). A idéia da infância como espaço de inocência –em xeque desde Freud, pelo menos– é a primeira que vai por água abaixo.
O cinema é um espaço em que as ambiguidades da infância se manifestam com frequência. Vamos deixar de lado os casos de jovens possessos ou anticristos em geral ("Damien", "O Exorcista" etc.). Em "Quando Fala o Coração", Hitchcock deu o exemplo mais claro de suas dúvidas em relação à inocência infantil: ali, o jovem Edwardes empurra outro garoto, que vai de encontro a uma grade e morre empalado.
Não existiu, no caso, vontade consciente de matar, mas isso muda pouca coisa. O inconsciente desconhece esses detalhes, e o dr. Edwardes carregará sua culpa até a idade adulta. Em Hitchcock, a idéia da infância culpada decorre do catolicismo. A vida é balizada pelo pecado original. O caso de Thomson e Venables –que mataram o pequeno James Bulger, 2, em fevereiro de 1993– está mais próximo do "Mouchette" do francês Robert Bresson. Ali, Bresson conta a história de uma menina num universo em que miséria e violência coexistem com necessidade de ser amado e uma inexorável atração pelo mal.
Thomson e Venables eram também produto de um meio pobre e desagregado, coisa que em Bresson, o jansenista, é circunstancial: para ele, a natureza do homem é intrinsecamente decaída. Mas a exposição da criança ao mal não é a negligenciar em "Meu Odio Será Sua Herança", de Sam Peckimpah. O grosso da violência corre, ali, por conta dos adultos. Mas, como esquecer a cena logo no início, em que um grupo de crianças imola alegremente insetos –formigas e escorpiões, salvo engano– em uma fogueira? Peckimpah está olhando para o futuro: aquilo que os adultos dão como formação às crianças.
Também nesse registro está o "Bloody Kids", filme feito por Stephen Frears em 1979, antes de ficar famoso, onde um grupo de garotos de 11 anos, que se envolve em uma luta de facas; um deles vai parar no hospital.
Frears procura mostrar a situação de canalhice da Inglaterra na era Thatcher e antecipa em 13 anos os acontecimentos de Liverpool, ou ao menos sua circunstância social (perto do crime real, sua história é cor-de-rosa).
O Brasil também entra nessa galeria de menores infratores, via "Pixote", de Hector Babenco. Aí, no entanto, as circunstâncias servem mais para desculpar a infância.
Independente de circunstâncias sociais, também é verdade que o imaginário infantil nunca foi flor que se cheire. Na França, o psiquiatra Boris Cyrulnik disse à revista "Le Nouvel Observateur" que a criança não é boa por natureza: "Quando se pede a crianças que inventem histórias, com frequência elas são de uma crueldade insustentável".
Se o mundo das crianças torna-se, subitamente, a incógnita do fim de século, o mesmo caso Thomson/Venables não deixa de ser inquietante a respeito do mundo dos adultos: 38 pessoas viram o menino ser arrastado ao longo de de 5 quilômetros, em 13 de fevereiro passado. Nenhuma se sentiu concernida pelo que via.

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