São Paulo, quarta-feira, 5 de janeiro de 1994
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A OBRA SEGUNDO OCTAVIO PAZ

O visitante cruza uma portinha e penetra num cômodo que se pode considerar pequeno, absolutamente vazio. Nenhum quadro nas paredes de gesso. Não há janelas. Na parede do fundo, embutida num portal de tijolos arrematado por um arco, há uma velha porta de madeira carcomida (...). A porta opõe ao visitante sua materialidade de porta com uma espécie de altivez: não há passagem (...) Uma verdadeira porta condenada. Mas se o visitante se aproxima, descobre dois furinhos à altura dos olhos. Se se aproxima ainda mais e se atreve a bisbilhotar verá uma cena que não será fácil que esqueça nunca. Primeiro, um muro de tijolo fendido e, através da fenda, um grande espaço luminoso e como que enfeitiçado. Muito perto do espectador –mas também muito distante, no "outro lado"– uma jovem nua, estendida sobre uma espécie de leito ou pira de ramos e folhas, o rosto quase inteiramente coberto pela massa loura de cabelo, as pernas abertas e ligeiramente flexionadas, o púbis estranhamente limpo de penugem em contraste com o esplendor abundante da cabeleira, o braço direito fora do raio visual do olhar, o esquerdo apenas levantado e a mão empunhando com firmeza uma pequena lâmpada de gás feita de metal e de vidro. A luzinha pisca em meio à luz brilhante das três da tarde desse imóvel dia de fim de verão. Fascinado por este desafio ao bom senso –o que há mais claro do que a luz?– o olhar percorre a paisagem: no fundo, colinas de abundante vegetação, verdes e avermelhadas; embaixo, um pequeno lago e sobre o lago uma tênue neblina. Um céu inevitavelmente azul. Duas ou três nuvenzinhas, também inevitavelmente brancas. No extremo direito, entre rochas, brilha uma cascata (...). A imobilidade da mulher nua e da paisagem contrasta com o movimento da cascata e o piscar da lâmpada. O silêncio é absoluto. Tudo é real e limítrofe da banalidade; tudo é irreal e limítrofe de quê?

Extraído de "Marcel Duchamp ou Castelo da Pureza" (Perspectiva); tradução de Sebastião Uchoa Leite.

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