São Paulo, sexta-feira, 7 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Organização e indisciplina têm seu preço

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Escrito com clareza, erudição e bom humor, o livro do economista Eduardo Giannetti da Fonseca ("Vícios Privados, Benefícios Públicos? - A Ética na Riqueza das Nações", Companhia das Letras, 244 págs.) daria para ocupar semanas ou meses de discussão, tal a relevância dos temas que aborda.
O propósito do livro é enfatizar a importância da ética, do comportamento moral, como fator do enriquecimento das sociedades, do desenvolvimento econômico.
Nada mais distante, à primeira vista, do que ética e economia. Toda uma tradição de pensamento econômico –que vai de Mandeville, no século 18, a Milton Friedman, nos nossos dias, sustenta a separação entre essas duas esferas.
Quanto mais egoísta e ambicioso for um indivíduo, melhor para a sociedade inteira: o desejo pessoal, a avidez pelo lucro, tende a produzir benefícios gerais, sob a forma de inovação tecnológica, barateamento dos preços, aumento da competição. Ao passo que uma comunidade composta de Madres Teresas de Calcutá sucumbiria na estagnação e na miséria.
É essa tese do "egoísmo ético" que o autor trata de contestar, recorrendo a pensadores clássicos da economia, como Adam Smith (que no livro não aparece tão ultraliberal quanto se pinta), John Stuart Mill, Alfred Marshall.
"Afirmar que a virtude pura não funciona na economia, o que é verdadeiro, não significa dizer que o vício puro funcione, o que é falso", diz Giannetti.
Brasil e Japão
A questão da ética não poderia estar mais em voga do que no Brasil de hoje. A idéia do "levar vantagem", a famosa "Lei de Gerson", tem sido criticada a torto e a direito, não raro com algumas dose de complacência, de elogio ambíguo à "esperteza" do brasileiro.
Incrível como, vivendo num país destes, os brasileiros tendem a se considerar espertos. É porque as coisas vão tão mal –sempre andaram, aliás– que a esperteza do indivíduo funciona como uma espécie de saída para a irracionalidade, para a estupidez do sistema social em seu conjunto.
Nesse sentido, Giannetti faz uma citação fundamental do sociólogo Max Weber: "O predomínio universal da absoluta inescrupulosidade na busca de interesses egoístas pela via da obtenção do dinheiro tem sido uma característica... daqueles países cujo desenvolvimento burguês-capitalista... permanece atrasado."
Ao contrário, no Japão, haveria entre os agentes econômicos uma ética do trabalho, da participação coletiva, da disciplina pessoal, que vai muito além do simples "levar vantagem", envolvendo outros valores que os do egoísmo crasso e interesseiro. Com vantagens visíveis sobre o enriquecimento geral da população.
Essa dupla experiência –a japonesa e a brasileira– parece ser o pano de fundo das reflexões de Giannetti. Mas em nenhum momento o autor se compraz em banalidades comparativas. Seu enfoque é muito mais teórico, ainda que exposto com graça e limpidez.
Eficiência
Mas, até mesmo pela simplicidade e pela lógica de seua argumentos, o livro instiga o leitor a "teorizar" por conta própria.
Certamente, uma sociedade em que todos os agentes econômicos fossem "imorais" –no sentido de malandros, interessados em obter vantagens imediatistas– não daria muito certo do ponto de vista econômico. Quanto maior a malandragem, maior o desperdício geral.
Giannetti cita John Stuart Mill: as despesas com advogados, a perda de tempo com demandas e reclamações, significam um enorme desperdício para a sociedade. Ao passo que, se os cidadãos fossem mais confiáveis, os gastos com o sistema jurídico poderiam ser canalizados para atividades mais úteis.
Basta ver, no Brasil, um caso como o do sistema de proteção ao crédito, do telecheque e serviços parecidos. Se fôssemos todos suíços, avessos à prática de passar cheques sem fundo, esse sistema não precisaria existir. E a quantidade de capital e energia humana gasta para mantê-lo se dirigiria a coisas melhores.
Mas nesse ponto começo a sentir algumas dúvidas. São, melhor dizendo, perguntas, que o livro de Giannetti sugere.
Em primeiro lugar, imagino ver uma assimetria. Pois os desperdícios presentes numa sociedade de "malandros" são claros, e poderiam até ser quantificados. Telecheque, advogados, batidas no trânsito por desobediência às regras, etc., tudo isso resulta em gastos teoricamente evitáveis. Tudo bem. Mas, numa situação oposta, a de uma sociedade com mais respeito à ética, são de certa forma "invisíveis" os gastos de dinheiro e energia empregados na construção de indivíduos bem-comportados.
O quanto de talentos perdidos pelo excesso de disciplina escolar pode, por exemplo, ser comparado numericamente à quantidade de talentos perdidos por falta de disciplina escolar? O que se perde de tempo e de energia nas celebrações rituais japonesas, tão úteis à moralidade individual (operários fazendo ginástica antes de entrar na fábrica), não seria equivalente ao que se perde de tempo, no Brasil, reclamando do taxista que nos quis enganar no troco?
Ou seja, a manutenção da moralidade individual também tem um custo –igrejas , bíblias, campanhas cívicas, hinos, ginástica– duvidoso para a sociedade. Como comparar? Como medir?
Pode-se dizer que os resultados são diferentes. Que a disciplina japonesa levou a prodígios de prosperidade que não conhecemos no Brasil. Mas me ocorre a frase de Valéry, depois da Primeira Guerra Mundial: a ciência e a ordem alemãs foram responsáveis por extremos de destruição. E quantos outros fatores, afinal, não ajudam uma sociedade a se desenvolver, mesmo quando frouxa e capenga do ponto de vista da moralidade?
Outra questão, que só posso abordar rapidamente. O que é "ética"? O que é "moral"? Se se trata, como parece às vezes no livro de Giannetti, de algo semelhante à recusa ao prazer imediato, ao predomínio do princípio da realidade sobre o princípio do prazer, seria lícito pensar, então, que na fábula de La Fontaine a formiga é mais "ética" do que a cigarra.
Mas, como o autor lembra muitas vezes, a decisão individual é o que dá substrato a qualquer julgamento ético. Nesse ponto, aliás, mesmo uma sociedade tirânica não consegue privar seus súditos de uma liberdade moral "in extremis". Talvez até conduz a atos de heroísmo e independência mais brilhantes. Não há, a meu ver, relação entre uma moral concebida nesses termos ("escolha" do indivíduo) e a quantidade de liberdade civil de que ele possa desfrutar. E a escolha da cigarra vale tanto quanto a escolha da formiga.
Um último problema. Sabemos que o dirigismo estatal trouxe enorme ineficiência ao sistema econômico soviético. Mas a livre concorrência e o mercado também trazem ineficiências, menos visíveis. Imagine-se uma loja de sapatos, vizinha de outra loja de sapatos. A loja "A" resolve pôr um anúncio luminoso. A loja "B" compra um sistema de som com duzentos megawatts. Resultado: mais barulho e feiúra na cidade, mais gastos inúteis. A livre concorrência não se encaminha necessariamente para o melhor dos mundos. Talvez também para um mundo mais frenético, como é o em que vivemos.

Texto Anterior: Desliguei a TV e levei o cão ao pet-shop
Próximo Texto: Sátira, futurismo e roça estréiam hoje
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.