São Paulo, sexta-feira, 7 de janeiro de 1994
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Crise de consciência nos Altos de Chiapas

JORGE CASTAÑEDA

Quase quase, ao grito de "No que no, hijos de la chingada!", o temido México bronco despertou de sua letargia e submissão nos remotos Altos de Chiapas, terra de indígenas e antropólogos. O surgimento intempestivo de uma guerrilha mexicana provocou uma crise política no país, uma crise de imagem no exterior e, como único resultado positivo, uma crise de consciência entre as elites mexicanas.
Quatro reflexões vêm à mente. A primeira tem a ver com a própria guerrilha. Trata-se, diferentemente das revoltas campesinas do Estado de Guerrero no início dos anos 70, de uma verdadeira guerrilha, e não de um grupo mais ou menos organizado de camponeses revoltados.
Embora seja evidente que nem todos os integrantes do Exército Zapatispa de Libertação Nacional tenham armas poderosas e modernas como as apresentadas por seus porta-vozes na TV, não resta dúvida que os combatentes fazem parte de uma estrutura definida e coordenada, sob autoridade única e com discurso político arcaico, mas consistente. A capacidade organizacional, logística, de comunicação, de relações públicas e a óbvia existência de uma tática e estratégia militar mostram que estamos diante de um grupo bem preparado.
Em segundo lugar, seu surgimento denota uma falha, um mistério quase incompreensível no funcionamento do aparato de Estado mexicano. Há quase três anos falava-se de uma guerrilha em Chiapas; em julho e agosto de 1993, o jornal "La Jornada" e a revista "Processo" publicaram reportagens sobre combates na Selva Lacandona e no povoado de Ocosingo. Como disse Carlos Montemayor, escritor mexicano conhecedor da história da luta armada, "nessas regiões, as montanhas têm olhos". Tudo se sabe, e os serviços de espionagem mexicanos, por mais corruptos e desalmados que sejam, têm uma reputação de eficiência e velocidade bem merecida.
Ninguém entende como milhares de camponeses puderam preparar uma operação tão complexa e ambiciosa sem que ninguém percebesse. É ainda menos compreensível quando se lembra que o atual secretário de Governo e responsável pela segurança do país, Patrocinio González Garrido, foi governador de Chiapas, e conserva o controle político de seu Estado.
Existe aí uma grave deficiência no governo de Salinas que revela ou uma imensa inconsciência –que teria permitido de propósito a revolta para alcançar determinado objetivo político– ou uma decomposição interna mais aguda do que se imaginava.
Em terceiro lugar, a revolta em Chiapas dá razão aos críticos opositores e céticos mexicanos, que desde 1988 insistem que o regime do presidente Salinas provocaria, cedo ou tarde, uma crise de grandes proporções. Ele foi advertido do que sucederia em um país não magicamente propulsado ao Primeiro Mundo, mas sim firmemente ancorado no Terceiro Mundo. Um país com territórios segregados, injustiças e desigualdades, autoritarismo e corrupção, pobreza e marginalização.
A revolta em Chiapas, no entanto, não é um fenômeno exclusivamente étnico, nem atribuível apenas à pobreza e ao atraso. Embora Chiapas seja de fato um dos Estados mais atrasados do México, também é um dos quatro onde o governo concentrou seus maiores esforços e recursos para o combate à pobreza através do programa "Solidariedade". A origem da guerrilha é antes de tudo uma questão política.
Durante o governo Salinas, gastou-se dinheiro em Chiapas, mas as estruturas políticas e sociais autoritárias, corruptas e oligárquicas foram fortalecidas. As autoridades estatais e o Exército continuam atuando a favor dos proprietários ao privar as comunidades de terra. As forças de segurança e, de novo, o Exército reprimiram os povos indígenas sem clemência: violaram direitos humanos, prenderam dirigentes, queimaram povoados, deixaram pendentes anseios ancestrais. Os chiapanenses, como milhões de mexicanos, não querem dinheiro a conta-gotas, mas recursos reais. Querem participar nas decisões de como os recursos são gastos, por quem e onde.
Daí a quarta e última reflexão: o México não pode continuar sendo governado como foi até o momento. O surgimento de uma guerrilha, por mais efêmera, significa que existem mexicanos que não acreditam na via eleitoral como meio de colocar suas exigências. Pesquisas indicam que mais da metade dos eleitores não crê em processos eleitorais limpos.
O governo de Carlos Salinas dedicou cinco anos, milhões de dólares e uma infinidade de apoios e amizades internacionais para destruir a única oposição que poderia atrair eleitoralmente setores descontentes como os de Chiapas: o cardenismo. Chamou-o de radical, extremista, violento e anacrônico, crendo que, em um país de magnatas e yuppies do PRI, caberiam 90 milhões de mexicanos.
Hoje Cárdenas é, como muitos pensavam, um mal menor. O mal maior está nos Altos de Chiapas, na Montanha de Guerrero, nos bairros de Netzahualcoyotl, nos barrancos de Tijuana. É a violência, o desespero, a impotência, a raiva. É o recurso irracional e condenável às armas, o repúdio à legalidade e à via eleitoral.
A nova configuração do espectro político mexicano que surge de Chiapas, se for duradoura, será mais fiel ao país real. Se acontecer por fim a democratização mexicana, a ira indígena e tantos outros ódios e ressentimentos sublimados no México mestiço poderão expressar-se onde devem: nas urnas. Os males menores –cardenistas renovados para uns, priistas democratizados para outros– conviveriam em um país onde caberiam todos os mexicanos, inclusive o comandante Marcos e os habitantes de San Juan Chamula. Não seria a pior consequência da revolta armada de San Cristobal de las Casas.

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