São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O guru "new age" e o militante bonzinho

MARCELO MUSA CAVALLARI
DA REDAÇÃO

A julgar pelos mais recentes livros de Leonardo Boff e Frei Betto, a Teologia da Libertação deu um passo à frente. Depois de se arrogar o direito a uma nova exegese, uma nova teologia dogmática, uma nova liturgia, uma nova catequese, uma nova doutrina moral, surgem, com os dois autores, novos evangelhos.
Boff abre seu "Ecologia, Mundialização, Espiritualidade" com um fantasioso Sermão da Montanha em que o Cristo do Corcovado desfia o credo politicamente correto da posição de guru "new age" que o frade franciscano demissionário vem assumindo desde a queda do comunismo. Betto parafraseia o prólogo do Evangelho de são Lucas para contar, não a vida de Jesus Cristo, mas seus passeios por países socialistas.
A Teologia da Libertação tem, tradicionalmente, se esgueirado numa estreita faixa quase indiscernível entre a ortodoxia e a interpretação do dado revelado como um conjunto de metáforas das quais importaria extrair os "valores". No caso dos teólogos da libertação, "valores" acima de tudo de caráter político. Não por acaso, o livro do Exodo, que narra uma libertação política literal dos judeus, é uma passagem predileta dos teólogos da libertação. A Revelação, como a Igreja, esvaziadas da transcendência que a tradição cristã sempre enxergou como seu fundamento, se tornam, na ótica dos "progressistas", úteis. Uteis como algumas entre tantas ferramentas de realização de um projeto político.
Assim, Boff e Betto tentam dar conta em seus livros de demonstrar que os "valores" que haviam encontrado na revelação –e que eram tão estreitamente compatíveis com a construção de sociedades socialistas– não sucumbiram com a derrocada destas.
Betto faz uma narração de sua experiência pessoal entre heróis da Segundo e Terceiro Mundos. Há lugar para Daniel Ortega, Mikhail Gorbatchov e, claro, Fidel Castro, por quem o dominicano mostra uma reverência e uma fidelidade que deixariam um papa constrangido. Betto parece querer demonstrar que ele e seus companheiros de aventuras –Chico Buarque, Roberto Dávila, dom Pedro Casaldáliga, Antonio Candido– são argumento suficiente em favor do socialismo. É como se dissesse que pessoas tão bem-intencionadas, tão legais, não poderiam estar todas erradas. O livro não vai muito mais longe do que isso. Betto mesmo diz no "Paraíso Perdido" que, se algum dia se disse teólogo, "foi por vaidade e presunção".
Boff é mais ousado. A teologia tradicional se define como a aplicação da razão ao dado revelado. Boff já dispensou a teologia tradicionaC há tempos. Não parece mais ver a revelação cristã como tal, mas como uma entre outras manifestações do espírito humano. Finalmente em "Ecologia, Mundialização, Espiritualidade" parece ter posto de lado a razão.
Seu livro articula, de maneira tão paratática quanto o título escolhido, conceitos de fácil aceitação (no mercado de leitores, não, evidentemente, dentro da Igreja) sobre ecologia, conflito Norte-Sul e a difusa espiritualidade que o esoterismo de massa vem promovendo. Sua principal preocupação é abraçar todas as "causas justas" que a perplexa esquerda contemporânea elegeu.
A marca mais típica dessa posição é a "linguagem inclusiva". Boff está tão preocupado em ser politicamente correto que se recusa a usar o termo "fraternidade" sozinho. Fala sempre em "fraternidade e sororidade", que cunhou a partir do latim "soror", irmã. Chega mesmo a falar que a imagem de Deus que Jesus nos comunicou é a de um "Pai materno".
Sua subserviência ao gosto médio é tanta que ele fala, ao tratar de ecologia, que é preciso evitar o apocalipse. Ora, Boff, que já foi um teólogo rigoroso, sabe que há dois sentidos possíveis para apocalipse, entre os cristãos. Ou a palavra é tomada em seu sentido grego, e significa revelação, ou é usada para designar o conteúdo do livro bíblico chamado Apocalipse (e seus congêneres), que trata da escatologia. Em qualquer desses dois sentidos, não poderia ser objetivo de um cristão "evitar" o apocalipse. Boff, porém, se dobra ao senso comum para designar por apocalipse a destruição catastrófica do mundo que o engajamento ecológico poderia evitar.
Ecologia passou a ser a palavra mágica para Boff. Ele a entende como o conceito fundamental que deve pautar o comportamento humano. Em relação à natureza, por certo, mas em relação às pessoas, à sociedade e em relação a Deus. Boff parece estar querendo reinventar, sob o termo mais aceitável de Ecologia, o que os velhos cristãos não temeriam chamar simplesmente de bondade.

Texto Anterior: Teólogos relêem o socialismo
Próximo Texto: Vinícius, o grande "gentleman" da poesia brasileira<TB>
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.