São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Vinícius, o grande "gentleman" da poesia brasileira<TB>

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Vinícius, o grande "gentleman" da poesia brasileira
Em "Jardim Noturno" ele canta o amor com elegância
Poesia é uma atividade arriscada, não porque haja "uma gota de sangue em cada verso" ou qualquer coisa assim, mas simplesmente devido ao fato de haver poucas coisas tão ruins quanto um poema ruim –mesmo, ou sobretudo, se feito por alguém de renome. Por isso, ficando apenas entre os grandes, é tão difícil aceitar muito do que Drummond escreveu depois de "Lição de Coisas" ou causa tanto constrangimento o porquinho-da-índia de Manuel Bandeira. Ler o que de pior ambos escreveram é como pegar o avô bêbado, falando besteira e beliscando a empregada.
Diante desse problema, Vinícius de Moraes, tanto em sua poesia já divulgada quanto nos inéditos parcialmente recolhidos agora neste "Jardim Noturno", revela-se paradoxalmente o grande "gentleman" da poesia brasileira. Considerando que a maior parte de seus poemas tematiza Deus, a vida, a morte, o amor e a mulher, é sem dúvida notável quão pouco ele resvala na pieguice, quão raramente cai no ridículo. Se quase nunca atinge profundidades verdadeiramente sérias, cabe admitir que tampouco multiplica asneiras imperdoáveis. Como homem do mundo que foi, soube desde cedo –caso se lhe perdoe o "weltschmerz" postiço de quem, aos 20 ou 25, discorre sobre o sofrimento de viver– manter o nível e a compostura em sua lira, não perdendo jamais a classe, algo que, neste país, vale mais do que parece.
Fosse apenas isso e já seria exemplar numa língua em que poesia, vazada em verborragia e diminutivos, confunde-se com a afetação entre infantil e efeminada (sem preconceitos: os gays também não gostam dela) de nostalgia ou hipersensibilidade invariavelmente falsas. A primeira fase –mística– de Vinícius tinha tudo para afundar nesse ramorrão, pois, afinal, quem é capaz atualmente de digerir transcendências poéticas exceto nas alturas dos "Quatro Quartetos", das "Elegias de Duíno" ou "Grande Sertão: Veredas"? No entanto, ela se livra com um veredito de irrelevância e uma leve condenação ao engavetamento. Concluindo, porém, essa fase, em 1937, o poeta abandona sua pose de gente grande e começa a escrever uma poesia surpreendentemente adulta. Seu "Soneto de Intimidade" desse ano, que termina com os versos "Nós todos, animais, sem comoção nenhuma,/ Mijamos em comum numa festa de espuma", antecipa em termos de maturidade o que Drummond e outros só escreveriam na década seguinte.
Talvez seja esta a sua característica mais satisfatória: uma maturidade emocional permeada de ironia e traduzida num domínio técnico que, quando alcança seus raros momentos de virtuosismo, produz versos de uma qualidade única. Não são numerosos em "Jardim Noturno" esses momentos, como tampouco o são no restante de sua obra, mas, uma vez que se apresentem, rivalizam com o melhor de Drummond, Bandeira, Murilo, ou João Cabral. "A Ultima Elegia" (uma espécie de "Zone" apollinaireana refeita à luz do "Waste Land" de Eliot), suas paráfrases eliotianas "O Crocodilo" e "As Mulheres Ocas", o "Tríptico na Morte de Siergei Mikhailovitch Eisenstein", por exemplo, não ficam nada a dever a nenhum deles. O mesmo vale para alguns de seus inéditos, como "O Eleito" ou "Exumação de Mário de Andrade". O primeiro, ao descrever seu tesão de menino por uma tia provavelmente solteirona, evoca o naturalismo do "Soneto de Intimidade" numa estrofe como: "Por fim, sem poder mais, contendo à toa o hausto/ Do gozo, corria a chorar para o banheiro/ Onde, entre vômitos, o olfato aberto ao cheiro/ Acre, masturbava-me até ficar exausto". (Vale a pena observar nesse trecho que nada tem de brutalista, sendo só objetivo, a excelência dos "enjambements".)
Neste volume como alhures, os sonetos merecem uma nota à parte. É a eles que o poeta deve o quinhão maior de sua popularidade. Não cabe, porém, relegar o fato tão somente ao prestígio de que a forma sempre desfrutou em português, onde a quantidade de sonetos medíocres encheria mais de uma biblioteca. O sucesso de Vinícius no soneto deve-se a mais do que sua inegável maestria, pois ele sonha arrancá-lo do ranço ao qual os parnasianos o haviam condenado, revitalizando-o com todos os recursos que nele investiram seus primeiros mestres, principalmente Camões.
Como se poderia esperar, a publicação de uma centena de inéditos nada deduz do total de sua obra e pouco lhe acrescenta além de dois ou três poemas e a confirmação de que seus manuscritos em estado de rascunho surgem despidos de interesse. Vinícius, enquanto autor de primeiro escalão, não escreveu mais que duas dúzias de poemas que são, contudo, material suficiente para que ele mereça uma recepção crítica bem mais criteriosa, se por nenhuma outra razão, pela de ser dos nossos raros poetas amorosos ou eróticos que sabem efetivamente do que estão falando. Quando tematiza as mulheres, ele não está materializando uma abstração irrelevante, dirigindo-se a algum eterno feminino de algibeira e almanaque ou reclamando de suas frustrações; pelo contrário, está discorrendo sobre o que, desejoso ou saciado, conhece bem: mulheres de carne e osso. Tudo indica que seus leitores se aperceberam disso antes e melhor do que muitos críticos profissionais. (Nelson Ascher)

A OBRA
Jardim Noturno - poemas noturnos, de Vinicius de Moraes. Organização e seleção de Ana Miranda. Capa de Hélio de Almeida. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, São Paulo, CEP 01233-000, tel. 011 826-1822, fax 011 826-5523). 196 págs. CR$ 5.460

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