São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Retrovar" une intecto e criação poética

CARLOS FELIPE MOISÉS
ESPECIAL PARA FOLHA

Retrovar une intelecto e criação poética
No início dos anos 60, Rubens Rodrigues Torres Filho (Botucatu, SP, 1942) fazia parte do variado grupo de jovens escritores que circulavam, na cidade de São Paulo, entre a rua Maria Antônia (sede da então Faculdade de Filosofia da SP), a Biblioteca Municipal (hoje "Mário de Andrade") e a rua Vergueiro, 688, onde o também jovem e editor Massao Ohno acolhia a todos, na "Coleção dos Novíssimos".
Naquele tempo, nos meios intelectuais não se acreditava em ninguém com menos de 30 anos. Por isso, a maior parte do grupo –idade média, 18– habituou-se desde cedo a curtir a sua "angústia metafísica" ou a sua "fossa existencial". A revolução cubana era uma flor tenra e mal-amada, Brasília acabava de ser construída e quem podia acelerava seu Simca-Chambord ou o seu Gordini, certo de estar a bordo de um país a caminho do Primeiro Mundo... Na esfera literária, o concretismo decretava o fim da literatura e instaurava uma nova linguagem, verbivocovisual, enquanto os CPCs (Centros Populares de Cultura) pregavam o engajamento revolucionário. O jovem poeta, "entre les deux"...
Naquele tempo... Melhor parar por aqui. Tudo isso é "história" e qualquer leitor minimamente informado sabe o que aconteceu nos últimos 30 anos. Hoje (Maria Antônia virou museu, as revoluções não deram muito certo e Massao Ohno continua a acolher poetas principiantes), R.R. poderia entregar-se à doce exaltação de uma história pessoal que em boa medida se confunde com a "história" de uma época. Daquele grupo, quantos se tornaram escritores ou intelectuais tão bem-sucedidos quanto ele? Rubens prefere surpreender-se. E surpreender. Hoje, 30 anos depois, não há nada de nostálgico na sua poesia e ele continua a criar e a publicar.
Seu último livro, "Retrovar" (Iluminuras, 1993, 64 págs.), intriga já a partir do título. O leitor apressado dirá: culto ao passado, elogio de reencontros e "revivals". Mas não. O que o poeta reencontra é o que nunca havia sido encontrado antes, isto é, o novo, o inexplorado. Retrovar, sem dúvida, mas não o já trovado e sim a capacidade de espanto diante do trovável.
Mais surpresas? Para quem ainda não reparou nas belas performances anteriores ("Investigação do Olhar", 1963; "O Vôo Circunflexo", 1981; "A Letra Descalça", 1985; "Poros", 1989), uma boa surpresa é a simbiose entre a erudição e a criação poética. Entre nós, isso ainda é considerado espúrio, muitos teimam em acreditar na inocência e na espontaneidade do ato criador e na sua suposta incompatibilidade com a cultura acadêmica e o uso da razão (R.R. é professor de filosofia na USP, ensaísta, tradutor de Fichte, Schelling e outros, especialista em romantismo alemão). Mas o poeta surpreende ao demonstrar exatamente o contrário. A medida que os anos passam e a experiência intelectual se adensa, mais R.R. parece assenhorear-se daquele ideal poético posto a circular por Alberto Caeiro: "Sei ter o pasmo essencial que uma criança teria se, ao nascer, reparasse que nascera deveras."
O leitor se surpreende com o pasmo, iso é, com a impressão de frescor e descoberta, e passa ao largo do fato capital: o que o poema registra não é a descoberta em si, mas o desenho da consciência atenta, que "repara" (e como repara!) no frescor do que está descobrindo. Está? Estava, esteve... Descobriu, pronto, deixou de ser. E por isso precisa ser retrovado, através das palavras: "Só porque digo em poesia/ é exagero? Não é não."
O tempo, a memória, a fugacidade da experiência a vida que escoa, e se não escoa degenera: eis a matéria (velha? nova?) com que lida a poesia de Rubens Rodrigues. Sutil, velada, às vezes hermética, é uma poesia à procura da coisa, mas que sabe, sem disfarce, que não pode fixar senão o nome da coisa. Daí o requinte artesanal com que o poeta manipula as palavras, alternando aspereza e suavidade, lirismo enternecido e súbita exasperação –jogos verbais, trocadilhos, alusões–, o deslumbramento contido dante de quase nada, isso, a vida vivida. E fingindo apenas brincar com as palavras, sem preconceitos e sem compromissos, salvo este: comover-se e comover, discretamente.
"Retrovar" expressa o sentimento fundo e denso de quem, cheio de pudor, foge do sentimentalismo. Sua grande arma é o humor, refinadíssimo:

Súbita musa
que me lambuza
Pálida musa
que não é nada, que é só recusa
que não é Nara, não é a Vanusa
nem é Danuza
mas é Leão.

Mais?

Vende-se
mala
Motivo
viagem.

Afinal, é tudo uma questão de sensibilidade, maneiras de ver e sentir. Um ver, aliás, responsável pela profusão de imagens, que garante a sustentação substancial desse 'Retrovar". Uma sensibilidade muito peculiar, que tem a marca pessoalíssima do autor, mas ao mesmo tempo registra o melhor sentimento de uma geração espremida entre o ufanismo e a derrota.

A OBRA
Retrovar, de Rubens Rodrigues Torres Filho. Capa de Marco Mancini. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, São Paulo, tel. 011 852-8284, fax 011 221-7903 , CEP 01426-001). 56 págs. CR$ 3.920

Texto Anterior: Vinícius, o grande "gentleman" da poesia brasileira<TB>
Próximo Texto: O desafio filosófico de Espinosa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.