São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 1994
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Hollywood aposta no infantilismo estético

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando a hegemonia do cinema americano parecia definitivamente assegurada, com críticos em todo o mundo babando sobre as glórias de Hollywood, três filmes recém-lançados pelos grandes estúdios nos EUA e assinados por três dos principais diretores americanos lembram que boa parte desse cinema continua funcionando dentro de um processo quase que ofensivo de infantilização.
"Um Mundo Perfeito" (em cartaz em São Paulo), de Clint Eastwood, "Schindler's List", de Steven Spielberg, e "Philadelphia", de Jonathan Demme, embora bastante diferentes tanto em gênero como em qualidade (o filme de Spielberg está quilômetros à frente dos outros dois), são representativos de uma tendência que aposta na debilização mental do público e, inevitavelmente, na do próprio cinema.
Tudo parecia assegurado em relação à hegemonia do cinema americano agora que a produção européia, a principal resistência estética aos filmes de Hollywood, encurralada e em franca decadência artística, recorre à sua última cartada (o protecionismo) como única chance de sobrevivência.
Tudo parecia assegurado diante de visíveis sinais de agonia alheia. Por exemplo: um cineasta como Wim Wenders, que sempre alardeou seu fascínio pelo cinema americano, sua disposição de entrar no esquema dos grandes estúdios, torna-se de repente um militante anti-americanista, enquanto dirige os piores filmes de sua carreira, depois de ter visto que não teria vez em Hollywood. A militância pelo protecionismo do cinema europeu, em grande parte, está infelizmente ligada à queda da força estética desses filmes.
Nos últimos anos a hegemonia econômica do cinema americano ganhou o aval estético com filmes de Scorsese, David Lynch, Jonathan Demme etc. Diante da derrocada econômica e em geral também estética do cinema internacional, os novos diretores americanos passaram a gozar junto à crítica internacional de um status antes reservado a cineastas como Godard, Antonioni, Bresson etc. Nada mais sadio que três desses diretores, involutariamente e de uma leva só, lembrarem agora a quem baba por Hollywood que as coisas não são bem assim.
A começar pelo filme de Eastwood, cujo "mundo perfeito" pressupõe a idéia de que os seres humanos (seus espectadores) vivem todos envolvidos pelos sentimentos mais primários e esquemáticos, sem qualquer complexidade psicológica, sem qualquer educação sentimental. Esse "Um Mundo Perfeito" pressupõe que somos todos retardados e está ancorado num clichê obsessivo da figura do pai, a que submete todos os personagens numa espécie de psicanálise de botequim.
Kevin Costner é um delinquente obcecado pela imagem do pai, que não conhece, e traumatizado pelos abusos que sofreu na infância, ao lado da mãe. Eastwood é um policial que, como um pai, sabe que Costner não tem culpa de nada –é uma vítima das circunstâncias sociais e familiares em que nasceu. Costner vai fugir da prisão, raptar um menino e com ele estabelecer uma relação paternal em que poderá demonstrar toda a sua bondade.
A inverossimilhança da trama dá saudades do tempo em que Hollywood, pelas mãos de um Charles Laughton, ainda sabia filmar um conto de fadas a partir do ponto de vista da psicologia infantil sem ter que apostar na infantilidade de uma sociedade formada por adultos.
Spielberg foi um dos principais responsáveis pela infantilização do cinema americano, concentrando todas as suas munições em histórias de e para idosos e crianças –mesmo se, nesse gênero, tenha realizado algumas obras-primas, como "E.T.". Seria injusto, no entanto, dizer que "Schindler's List" é apenas um exemplo dessa infantilização dos sentimentos. Spielberg parte de uma história emocionante para realizar um filme que os americanos, não sem uma boa dose de infantilidade, chamam desde 1.º de janeiro de "o filme do ano".
Em "Schindler's List" a estética do infantilismo emerge vez por outra mas sobretudo no grotesco final onde os sobreviventes reais da história aparecem na tela como que para justificar que o que se viu até ali é de fato real. Uma das premissas da estética do infantilismo é fazer com que o espectador acredite sempre que o que está vendo é real, confunda imaginário com realidade.
O principal exemplo dessa debilização é "Philadelphia", de Jonathan Demme. A premissa, no caso, já é infantil: fazer o primeiro filme de Hollywood sobre a Aids, para "conscientizar" uma sociedade de crianças cegas. "Philadelphia" não é horrível apenas por não mostrar as coisas como elas são (um casal de homossexuais que nem mesmo se beijam, uma família adorável dando todo o apoio ao rapaz doente etc.), principal queixa da comunidade gay em relação ao filme, mas por partir do princípio de apresentar uma cartilha de comportamento piedoso e compassivo ao espectador-criança.
Eastwood, Spielberg e Demme são consenso hoje entre críticos de todo o mundo. São os novos diretores-autores de um cinema feito para quem ainda baba na camisa.

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